Um país onde se fala ao contrário

Helena Matos
Observadorr 22/5/2016

Falar ao contrário implica treino diário. Esta semana treinámos os seguintes conceitos: opositor à guerra a que se chamava colonial, escola privada, barrigas de aluguer e golpes. Para a semana há mais

Opositor à guerra a que chamava colonial: pessoa que tem de ser respeitada por todos nós por ter estado na guerra a que chamava colonial e por ter estado na guerra contra essa guerra. Enfim são pessoas que querem medalhas das duas frentes – a da guerra colonial e a da guerra anti-colonialista à guerra colonial – a par do estatuto de combatente em ambos os lados. É estranho mas é assim. E questioná-lo dá sérios problemas.
Escolaridade gratuita: designação usada para referir a obrigatoriedade imposta aos pais portugueses de mandarem os seus filhos às escolas da rede pública. A escola gratuita (onde por sinal os alunos saem mais caros que nas privadas), caracteriza-se por assegurar, além das aulas em si mesmas, emprego a centenas de sindicalistas e ainda por funcionar como espaço de doutrinação nas sucessivas teorias do progressismo sobre os males do mundo e as formas de os resolver. Na prática, a escolaridade obrigatória constituiu-se num dever de frequência de certas escolas – sobretudo daquelas que ninguém quer – não devendo portanto causar admiração que seja mais fácil e mediaticamente valorizado pretender mudar de sexo do que ousar tentar mudar os filhos de escola dentro da rede pública.
Escola Privada: oficialmente, sobretudo entre os pais de esquerda, a escola privada é escolhida por apresentar horários mais compatíveis com o trabalho dos pais. Porque “os avós gostam”. Ou porque “os amiguinhos foram todos para lá”. Também porque as escolas públicas são todas “óptimas” mas aquela ao pé da sua casa “é excepcionalmente mal frequentada. Não é que eu tenha preconceitos, nada disso, mas realmente…” E assim, pelo menos até ao 7º ano de escolaridade mas muito frequentemente até ao 9º, lá vão os filhos destes pais cheios de sensibilidade social para com as políticas públicas sentar-se nos bancos dos colégios de São disto e São daquilo, outras vezes modernos, franceses ou alemães. Mas privados, obviamente. No domínio do inconveniente mantém-se apresentar as seguintes opções para justificar a preferência por uma Escola Privada: melhor ensino e mais atenção ao comportamento. Note-se contudo que apesar de tudo ainda se admite que se diga que se pretende colocar um filho numa Escola Privada porque ela apresenta melhores resultados. Já usar esse argumento para o inscrever numa determinada escola pública está ao nível do herético. De uma Escola Pública má para uma Escola Pública boa só se muda usando a Morada Certa
Morada Certa: a morada certa não corresponde de modo algum aos dados correctos do agregado familiar dos alunos. A Morada Certa é a morada falsa que se ensina as crianças a escrever para assim terem acesso às escolas públicas com melhores resultados ou que pelo menos não ditam aos alunos um destino social. No clube da Morada Certa (a saber falsa) têm entrada administrativa os filhos de muitos médicos, advogados, jornalistas, professores… Pelo contrário são muito diminutas as possibilidades de um negro nascido na Buraca ou o filho único de uma mãe branca divorciada a viver no Vale da Amoreira conseguirem apresentar uma Morada Certa que os liberte de integrar o mundo anunciado dos alunos desfavorecidos e problemáticos. Escapar ao destino socio-geográfico inscrito na Morada Certa é quase uma missão impossível.
Barrigas de aluguer : situação que pode ser tratada como avanço civilizacional ou crime consoante o perfil de quem aluga. (Ver Tribos Urbano-Chic e Tribos Antigas).
Barrigas de aluguer nas tribos urbano-chic: se a mulher que não pode engravidar tiver sido entrevistada por muitos jornalistas, apresentar um ar chic-urbano e declarar que tem um bebé que nasceu graças a uma barriga de aluguer no estrangeiro (invariavelmente paga) estamos perante uma nova forma de ser família que o Estado português tem de sancionar. Mais, se a mulher em causa declarar que vai poder ser feliz graças à aprovação das barrigas de aluguer em Portugal então passamos a falar de gestação de substituição e todos dão como adquirido que a mulher que vai estar nove meses grávida entrega generosa e gratuitamente aquela criança a outra mulher que passará a ser considerada mãe. Só falta mesmo que na gravação da radiosa entrevista surja Catarina Martins dizendo que agora a gestação de substituição é um direito, dando beijinhos a todos e a todas, com o jornalista a rematar que acabou o tempo dos filhos que a lei não deixava ter. Neste caso as barrigas de aluguer são obviamente um avanço civilizacional. Bem diversa é a classificação das mulheres que encomendam e entregam crianças fora do âmbito das tribos urbano-chic. Aí estamos perante um crime.
Barrigas de aluguer nas tribos antigas: crime, obviamente como se percebeu esta semana ao sermos confrontados com o caso de uma família cigana – ou feirante na designação preferida de alguns jornalistas para referir os ciganos sejam eles feirantes ou não – que terá ficado com o filho recém-nascido que outra mulher lhes entregou. Aí, dizem-nos, estamos perante um possível crime quiçá tráfico de pessoas, pois todos dão como adquirido que a mulher que entregou o filho recebeu dinheiro em troca. Consequentemente, e até que a Justiça o entenda, a criança foi institucionalizada. Como é que no caso das tribos urbano-chic se sabe antecipadamente que não existe pagamento e nas tribos antigas garantidamente se sabe que foi entregue uma determinada quantia é um daqueles casos que manda o bom senso não tentar averiguar.
Contestar governos: conceito que só se aplica quando os contestatários são de esquerda e os contestados de direita. Já se os contestados forem de esquerda temos duas possibilidades: aqueles que os contestam são ainda mais de esquerda e nesse caso os contestatários centram a sua fúria nos polícias em particular e no sistema em geral – caso da França – e essas manifestações não merecem destaque mediático. Na outra possibilidade, mais venezuelana por assim dizer, os contestados continuam a ser de esquerda mas os contestatários estão à sua direita. Nesse caso as manifestações passam imediatamente à categoria de conspirações e golpes e como tal devem ser referidos. Em situações como a brasileira esta ambivalência pode levar até que uma mesma situação seja avaliada em função do enquadramento político dos seus protagonistas: destituir Collor foi uma prova da maturidade das instituições, enquanto a destituição de Dilma se transformou no sinal inequívoco da degradação dessas mesmas instituições.
… No início este dialecto pode parecer estranho mas depois entranha-se.

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