Manifesto por um verdadeiro debate público sobre a Lei da Procriação Medicamente Assistida e gestação de substituição
Observador 18/5/2016, 13:54132
Se a gestante ou os beneficiários quiserem desistir da gravidez, pode haver interrupção? E em caso de malformação ou doença do feto? Quem decide? A mulher grávida ou os beneficiários? A lei nada prevê
Motivada por diferentes projetos de lei do BE, PAN, PEV e PS, a Assembleia da República aprovou hoje, dia 13/05/2016, alterações à Lei n.º 32/2006, relativa à Procriação Medicamente Assistida (PMA), que serão agora apreciadas pelo Presidente da República.
Considerando que estas alterações constituem mudanças profundas no espírito da lei e colocam delicadas questões éticas, jurídicas, médicas e psicológicas, um grupo de estudantes e jovens trabalhadores, sem qualquer filiação partidária, entendeu tomar uma posição pública sobre este assunto, com a intenção de alargar o grupo a todos os que se identificam com esta posição.
Acreditamos ser imprescindível um debate aprofundado e alargado a toda a sociedade portuguesa, consultando especialistas de diversas áreas, antes de se proceder a eventuais alterações legislativas. Este debate não existiu até agora, tendo sido restringido aos gabinetes da Assembleia da República.
As principais alterações propostas incluem:
- Alargar o acesso à PMA a todas as mulheres – solteiras, casadas, em união de facto, divorciadas ou viúvas, independentemente da sua orientação sexual, com ou sem problemas clínicos , alegando os proponentes a existência de um direito a ter filhos e que a lei é discriminatória e limita a liberdade e autonomia individuais. Atualmente, apenas casais heterossexuais, com problemas médicos, podem recorrer à PMA.
- Permitir a eliminação de embriões, após 3 ou 6 anos, caso não haja nenhum projeto parental ou de investigação científica. Os projetos de lei não explicam as razões para esta alteração, pelo que se desconhece qual terá sido a sua fundamentação ou se foram tidos em conta os dilemas éticos relacionados com a manipulação de embriões.
- Permitir a gestação de substituição, mais conhecida por “barrigas de aluguer”, “a título excecional e com natureza gratuita, nos casos de ausência de útero, lesão ou doença deste órgão que impeça de forma absoluta e definitiva a gravidez da mulher ou outras situações clínicas que o justifiquem” (art. 8.º, n.º 2, PL 183/XIII/1.ª). Esta questão foi discutida na Comissão de Saúde, não tendo sido aprovada. Não obstante, ignorando o resultado da votação na Comissão de Saúde, o BE apresentou um novo projeto de lei com vista a legalizar a gestação de substituição, no mesmo dia em que viu a sua proposta ser chumbada em sede de Comissão.
Assim, pretende-se com este manifesto demonstrar a necessidade de um debate alargado e contribuir para essa mesma discussão, abordando-se três questões essenciais suscitadas pelas alterações propostas:
1. Sobre a alegada existência de um direito a ter filhos e o superior interesse da criança
De acordo com o Conselho Nacional de Ética para as Ciências da Vida (CNECV), “o interesse da criança que vai nascer deve ser valorizado acima de todos os outros interesses envolvidos, em consonância, aliás, com todo o ordenamento legal português que subordina quaisquer interesses ao «princípio do interesse superior da criança»” (87/CNECV/2016, p. 12). Desta forma, a discussão em torno da PMA deve centrar-se, antes de mais, na criança, algo que o projeto de lei ignora por completo.
Em primeiro lugar, importa frisar que um filho não é um direito. O desejo de ter filhos é perfeitamente legítimo e até louvável. No entanto, daqui não deriva um direito a ter filhos. Alegar que existe tal direito é dizer que a mãe e/ou o pai têm direitos sobre a vida do filho – direito à existência de outra pessoa -, o que pressupõe a superioridade dos progenitores sobre a criança e atenta contra a sua dignidade. Com as alterações propostas, a criança deixa de ter valor em si mesma e passa a valer na medida em que permite satisfazer um direito, tornando-se mero instrumento de realização pessoal.
Em relação ao superior interesse da criança, surgem, desde logo, várias questões que devem ser ponderadas: no caso de uma mulher solteira que recorre à PMA, é do superior interesse da criança nascer numa família monoparental, sendo-lhe negado, logo à partida e de forma deliberada, o direito a ter e a conhecer o seu pai? É do superior interesse da criança que esta seja filha de um pai incógnito e que não possa nunca saber a sua identidade?
Uma coisa é, por circunstâncias excecionais e delicadas da vida, uma criança não poder conhecer e viver com os seus pais, reconhecendo-se que, à luz do superior interesse da criança, é mais indicado para ela ter direito a um lar em vez de viver numa instituição (sendo que as pessoas adotadas têm o direito de conhecer as suas origens); coisa diversa é, premeditadamente, trazer à vida uma criança a quem, logo à partida, por ditame da lei, é proibido conhecer a sua origem biológica, sendo até possível o registo de crianças com pai incógnito.
Conforme indica o CNECV, “a serem aprovados, os Projetos de Lei contrariam o que o sistema da filiação tem vindo a assumir nas últimas décadas no sentido da progressiva eliminação de assentos de nascimento omissos quanto a um dos progenitores, no suposto da realização dos direitos do/a filho/a” (87/CNECV/2016, p. 11).
Assim, ao focar-se num pretenso direito a ter filhos, o projeto de lei falha o alvo e desinteressa-se daquilo que é mais importante: a proteção da vida frágil e vulnerável; a proteção da criança. Queremos uma sociedade onde se considere normal, em vez de excecional, que sejam atribuídas crianças a um casal ou pessoa solteira, que, através da junção laboratorial, são filhas de apenas um dos elementos e de um terceiro que nunca vão conhecer? É imprescindível saber qual a posição dos cidadãos perante esta mudança social.
2. Sobre a alegada discriminação e limitação da liberdade individual
À luz da Constituição da República Portuguesa, o princípio da igualdade (art. 13.º) dispõe que deve ser tratado de forma igual o que for igual, mas deve merecer um tratamento diferenciado aquilo que for diferente. Tudo depende, pois, de existir justificação clara e justa para esse tratamento diferente.
Não há discriminação no facto de a mulher necessitar do homem, e de o homem necessitar da mulher, para gerar vida. Existe sim uma característica intrínseca ao ser humano. Um casal homossexual, ou qualquer pessoa sozinha, não pode, por si só, gerar vida, tendo necessariamente que recorrer a um terceiro do sexo oposto. Isto é um facto, não uma imposição moral. Considerar que a procriação natural é discriminatória é, no mínimo, absurdo, atribuindo à Natureza um caráter moral de que esta não está dotada.
Se existe algum tipo de discriminação na lei atual, esta é uma discriminação positiva. Ao estabelecer que só pessoas com problemas de saúde podem aceder à PMA, a lei procura auxiliar essas pessoas a procriar, conferindo-lhes o direito de acesso a essas técnicas, justificado na situação clínica dos beneficiários. As alterações propostas eliminam essa discriminação positiva e permitem o recurso à PMA, quer a pessoas saudáveis, quer a pessoas com problemas médicos, desvalorizando e desrespeitando o seu problema de saúde. Tornam, assim, a PMA numa verdadeira alternativa à procriação natural, como se fosse tão legítima e válida como esta em qualquer contexto, isto é, independentemente da existência ou não de limitações físicas à procriação natural entre homem e mulher.
Temos, portanto, de perceber se estas diferenças evidentes devem ter um tratamento igual aos olhos da Lei. Porque deveríamos mudar o espírito da lei e alargar a PMA a todas as mulheres, independentemente de haver ou não um problema de saúde? Numa situação de constrangimento de recursos, será dada prioridade às pessoas com problemas médicos? Faz sentido que através da ciência se transfigure tudo o que é de natural no ser humano? Há justificação para esta aversão ao que é inerente à espécie humana? O que querem os portugueses para a sua sociedade?
3. Sobre a gestação de substituição
As situações de ausência de útero ou lesão grave que impeça a gravidez acarretam certamente um grande sofrimento para a mulher, que não poderá realizar o seu legítimo desejo de ter filhos. No entanto, como já foi dito, um filho não é um direito e não se pode recorrer a todo e qualquer meio para satisfazer um desejo, por muito válido que este seja.
A gestação de substituição, mais conhecida por “barrigas de aluguer”, consiste em suportar uma gravidez em nome de outra mulher, entregando a criança após o parto. O projeto de lei do BE refere que a gestante renuncia “aos poderes e deveres próprios da maternidade”. Ora, só quem é mãe poderia renunciar a esses poderes e deveres (se é que alguém pode renunciar a deveres), pelo que o projeto de lei assume implicitamente que a maternidade é uma qualidade da mulher grávida. Assim sendo, a gestação de substituição levanta questões sobre o que é ser mãe. É mãe quem dá o material genético? É mãe quem suporta a gravidez? É mãe quem cuida da criança?
Por outro lado, a gestação de substituição ignora os laços afetivos e psicológicos estabelecidos entre o feto e a mulher grávida, que a ciência reconhece como importantes para o desenvolvimento futuro da criança, e torna a mulher numa mera incubadora, violando a sua dignidade e desvalorizando o período de gravidez. Como afirma o CNECV, importa “ponderar se será aceitável que a lei imponha o cumprimento de um contrato que representa o corte com o vínculo biológico e afetivo construído ao longo do desenvolvimento intrauterino da criança e cuja manutenção e aperfeiçoamento a ciência já demonstrou ser benéfica para o recém-nascido, no seu processo de crescimento e de afirmação bio-psico-social” (87/CNECV/2016, pp. 15-16). É do superior interesse da criança separá-la da mulher que a suportou durante nove meses?
Esta questão é também relevante do ponto de vista do bem estar da criança: a ciência considera que a amamentação é muito importante nos primeiros tempos de vida da criança e para a criação de laços entre mãe e filho. Reconhecendo as mais valias para a sua saúde, poderá o bebé ser amamentado pela gestante de substituição ou ser-lhe-á isso negado à partida? Se o bebé for amamentado pela gestante, como ignorar os laços que se desenvolvem e reforçam entre os dois?
Mais ainda, o projeto de lei não esclarece sobre como proceder quando se alteram as condições iniciais do contrato. Se a gestante ou os beneficiários quiserem revogar o contrato e desistir da gravidez, pode interromper-se a gravidez? E em caso de malformação ou doença do feto? Quem decide pela interrupção ou não da gravidez? A mulher grávida ou os beneficiários? Podem os beneficiários impor que a gestante interrompa a gravidez, pondo em causa a sua autonomia e liberdade? Pode a gestante interromper a gravidez de um filho que a lei não reconhece como seu? Se a criança quando nasce é tida como filha dos beneficiários, de quem se considera filho o nascituro?
Finalmente, o projeto de lei é ambíguo sobre quem pode recorrer à gestação de substituição. Para além das mulheres sem útero ou com lesão do útero que impossibilita a gravidez, o texto proposto refere-se a “outras situações clínicas que o justifiquem”. O que significa este conceito? Quem o define?
Faz sentido quebrar a íntima ligação que se estabelece entre gestação, maternidade e paternidade? Que limites queremos ou não colocar à forma como a ciência e a tecnologia afetam a nossa humanidade? Um avanço na ciência corresponde necessariamente a um progresso civilizacional?
Estas e outras perguntas, algumas delas levantadas pelo CNECV nos seus pareceres, continuam sem merecer reflexão ou proposta no âmbito do projeto lei em causa. Repare-se ainda que a figura das “barrigas de aluguer” foi condenada no Parlamento Europeu, em dezembro de 2015, em virtude de tratar o corpo e as capacidades reprodutivas da mulher como um bem transacionável.
4. Conclusão
Em suma, fica clara a nossa oposição às alterações legislativas propostas e a recomendação de prudência e debate público antes de se tomar uma decisão final sobre as mesmas.
Tendo em conta que se levantam várias questões delicadas em torno da Procriação Medicamente Assistida e da Gestação de Substituição e que não tem havido o necessário debate público para o seu esclarecimento, impõe-se que este diálogo aconteça na sociedade portuguesa e se considere, inclusivamente, a possibilidade de um referendo sobre o tema.
Se, em Democracia, a Lei resulta eminentemente de consensos sociais, que se baseiam em valores morais, importa saber a posição dos portugueses.
Urge, por isso, aprofundar-se e alargar-se a discussão, de forma a perceber qual o futuro que os portugueses pretendem para a sua sociedade. Se a Assembleia da República é a casa da Democracia, não se deve furtar a um debate plural e democrático, procurando escrutinar o entendimento e vontade da maioria dos portugueses.
Assim, apelamos ao Presidente da República que, ao abrigo dos seus poderes constitucionais, vete os diplomas em causa, de forma a permitir o debate na sociedade e a geração de um consenso alargado.
No melhor espírito democrático, respeitaremos o resultado desse debate e eventual referendo, mesmo que este seja contrário ao nosso ponto de vista.
13 de Maio de 2016
Os signatários,
Afonso Espregueira, 23 anos, estudante de mestrado (estudos de desenvolvimento)
Carlos Cunha Coutinho, 23 anos, advogado estagiário
Maria Sofia Ribeiro, 21 anos, estudante de mestrado (matemática)
Mafalda Figueiredo, 23 anos, enfermeira
Leonor Costa e Almeida, 20 anos, estudante de licenciatura (economia)
Catarina Figueiredo, 23 anos, estudante de mestrado (direitos humanos e ação humanitária)
Maria Lopes Cardoso, 23 anos, enfermeira
Carlos Grijó, 20 anos, estudante de mestrado integrado (medicina)
Maria Branco, 26 anos, engenheira do ambiente
Diogo Ferreira da Silva, 23 anos, estudante de mestrado integrado (medicina)
Francisco Martins da Rocha, 21 anos, estudante de licenciatura (economia)
Francisco Vieira, 23 anos, estudante de mestrado integrado (engenharia mecânica)
Ana Cunha Pinto, 22 anos, estudante de licenciatura (contabilidade e administração)
Pedro Tovar, 22 anos, estudante de mestrado integrado (engenharia civil)
Maria Francisca Cardoso Girão, 26 anos, designer de comunicação
Diogo Espregueira, 25 anos, estudante de mestrado integrado (engenharia industrial e gestão)
Bruno Monteiro, 26 anos, engenheiro e gestor industrial
Teresa Príncipe, 21 anos, estudante de licenciatura (artes plásticas)
Ana Miranda, 24 anos, designer de comunicação
Luísa Tormenta, 19 anos, estudante de licenciatura (design de comunicação)
Ricardo Teixeira Pinto, 29 anos, estudante de mestrado integrado (medicina)
Isabel Girão, 25 anos, designer de comunicação
Carlos Ribeiro, 28 anos, arquiteto
Henrique Lopes Cardoso, 22 anos, estudante de mestrado integrado (engenharia informática)
Francisco Quintas e Sousa, 23 anos, estudante de mestrado (gestão)
Margarida Brito, 23 anos, estudante de mestrado integrado (engenharia química)
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