Olhar para a vida de forma positiva - eutanásia?
FERNANDO MAYMONE MARTINS (*) 22.12.16
Para o meu amigo Pedro Aguiar Pinto, falecido a 11 de Outubro de 2016.
A proximidade do debate parlamentar sobre a eutanásia requer profunda reflexão.
É sempre importante olhar para a vida de forma positiva e a proximidade deste debate faz com que a reflexão seja ainda mais importante agora.
Na realidade, a vida é um dom que está acima de nós. Um bem “sine qua non”. Um bem sem o qual nenhum outro bem existe. Nem dignidade, nem liberdade, nem autonomia. A sua extinção suprime todos os demais do quadro da experiência humana.
É por isso que a vida é o primeiro direito. Faz todo o sentido que assim seja e que esse direito primordial seja reconhecido como tal e apoiado pela sociedade e pelo enquadramento jurídico por que ela se rege. É o que acontece entre nós por preceito constitucional.
Da mesma forma, faz todo o sentido que sejam apoiadas a autonomia e a liberdade. Fazem parte da dignidade humana. E essa autonomia e liberdade são especialmente importantes nos momentos das decisões fundamentais.
Nesses momentos tão críticos é necessário, é normal e é bom falar com intimidade e confiança. Ouvir e reflectir. E isso é tão mais necessário quanto mais grave for o assunto, quanto maior for o apreço que se tem pelo interlocutor e quanto mais adequadas forem as qualificações deste.
Como já tantas vezes se disse, o homem é um ser social. As principais decisões, sendo acima de tudo decisões individuais, são também fruto da influência do nosso relacionamento com os outros.
É por isso bom favorecer a autonomia e a liberdade, tal como é bom favorecer a companhia e o apoio. Porque é isso que as torna humanas. E só sendo humanas têm dignidade.
O Estado não tem que proporcionar obrigatoriamente todo o apoio humano directo às pessoas em sofrimento, ou na fase terminal da vida. Mas tem que apoiar os primeiros protagonistas que o facultam. Desde logo a família. Depois os cuidados paliativos, os agentes de acção social e psicológica, as redes de solidariedade, as IPSS, os serviços de voluntariado, a humanização das instituições de saúde em geral.
O exercício da autonomia não resulta nas mesmas decisões quando se vive na solidão e quando se tem companhia.
A experiência mostra que, na presença de uma companhia, sobretudo se próxima e amiga, a probabilidade de escolha pela vida é maior. A liberdade é maior. Maior porque, mesmo na dificuldade, abre as portas a uma escolha que traz mais paz, que abre as portas às reconciliações e aos acertos de vida a que o coração apela.
A solidão conduz mais depressa (ou coage) à tristeza, à depressão, à morte.
O abandono e a antecipação voluntária da morte andam de mãos dadas e são desumanos.
A eutanásia é própria de uma sociedade de indiferença, que se desinteressa e vira as costas às pessoas. Que não valoriza a necessidade que elas têm de acolhimento, de acompanhamento, de amor e de calor humano.
É por isso que não faz sentido falar de morte assistida a respeito da eutanásia. Morte assistida? Sim, claro! No sentido de garantir assistência e apoio às pessoas em sofrimento ou à beira da morte. Não no sentido de as matar.
Infligir a morte é um acto que está nos antípodas do sentido das profissões médicas.
Seguramente, não tem cabimento prolongar e arrastar o sofrimento em doença terminal incurável. Mas isso não torna lícito o descarte dos doentes terminais, ou das pessoas em sofrimento, que a medicina tem obrigação de tratar.
Não pode o Estado decidir que a vida merece protecção numas circunstâncias e noutras não. Nem arrogar-se o privilégio de atribuir a alguns cidadãos o direito (ou o dever!) de matar outros nas circunstâncias que lhe aprouver definir.
Além disso, as estatísticas dos países onde a eutanásia se tornou legal mostram o plano inclinado a que a legalização conduziu. Dos casos excepcionais passou-se à prática comum. Das indicações limitadíssimas passou-se a enorme variedade de doenças e situações, à conveniência da contenção nos gastos, quando não a interesses inconfessáveis de heranças e vinganças. Nada faz pensar que entre nós seja diferente.
O sofrimento e a morte são parte integrante e inelutável da vida. A sua proximidade ou presença só tornam mais evidente a necessidade de companhia e apoio para ter paz em ocasiões tão penosas quanto complexas.
Na realidade, todos somos capazes de encontrar sentido profundo no sofrimento e na morte – Quantos não dariam a vida por um filho? Quantos não estão prontos a sofrer por quem amam?
Toda a vida inclui inevitavelmente fases profundamente dramáticas de sofrimento físico, psicológico, afectivo, moral. E a morte. Elas fazem parte inseparável da experiência humana. É impossível ignorá-las e ainda mais eliminá-las.
Mas é possível viver integralmente a vida com dignidade. Eutanásia? Não, obrigado!
(*) Médico, Cardiologista Pediatra. Ex-Presidente da Sociedade Europeia de Cardiologia Pediátrica
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