Natal: das luzinhas ao essencial
Não, não temos que estar sempre bem e ter a vida toda moralmente ou regradamente direitinha para que Deus nos visite. Nem tudo na vida é bem sucedido e nós experimentamos os seus fracassos na pele.
As cidades transformam-se. Luzes e estrelinhas por todo o lado. Músicas de fundo nos cafés, nos centros comerciais e nas ruas. Azáfama, gente, muita gente a correr de um lado para o outro. Associações beneméritas fazem peditórios, escuteiros ajudam a angariar bens para os mais necessitados, igrejas mobilizam os seus fiéis para organizar consoadas para os sem-abrigo, concertos gratuitos, jantares solidários. As pessoas tornam-se mais simpáticas, sorridentes, queridas. Desejamo-nos paz e alegria, saúde, boas viagens…
A atividade económica dispara, nascem barraquinhas e florescem pequenos negócios, barretes de pai natal de todas as cores, cheiro a castanhas, jantares de natal nas empresas, mães natal meio despidas a publicitar lingerie (mas com o barrete, claro!). Tolerância de ponto no dia 26 de dezembro para a função pública, programas vários, viagens e compras, muitas compras! Que se dane o PIB, a dívida pública e as dívidas privadas. Não interessa o falimento da banca nem o desemprego. É Natal.
Season’s greetings ou boas festas, porque desejar um Bom Natal ou, ainda pior, um Santo Natal, é de uma descriminação abominável e de uma falta de sensibilidade imperdoável para com os não cristãos. Afinal, o Natal já não é simplesmente uma celebração religiosa, mas sim uma festa de todos. E há que respeitar a cultura e a liberdade de cada um. Não temos o direito de ofender e excluir ninguém. Esta atitude politicamente correta, de uma suposta neutralidade laica, está a corroer a cultura ocidental, que não sabe reconhecer quem é e se circunscreve a um vazio de vida cada vez mais profundo e devastador, dando lugar ao surgimento de todos os fundamentalismos e terrorismos.
Que todos, cristãos e não cristãos, queiram celebrar o Natal, é um ótimo sinal. Porque, de facto, os valores cristãos são sumamente humanos e humanizadores e nós, cristãos, não somos os detentores do Evangelho. Nem, muito menos, a Igreja Católica. É património da humanidade oferecido a todos para que todos possam dele tirar proveito. Mas, mesmo que a cultura laica tenha batizado o Natal e a força consumista lhe esconda o essencial, o Natal é uma festa cristã, simplesmente porque celebra o nascimento de Cristo. Desvirtuá-la do seu fundamento é furtar-lhe a razão de existir.
Por outro lado, permanecer na nostalgia bucólica e sentimentalista de algo que aconteceu há dois mil anos, ainda por cima pintado de cor-de-rosa, sem o traduzir para a nossa vida concreta, é falhar-lhe o significado fundamental e perder-lhe a raiz.
No Natal real tudo parece ter corrido mal. Se lhe desmontarmos o quadro bucólico, descobrimos uma família obrigada a deslocar-se, com uma mãe que dá à luz o seu filho num espaço próprio de animais por não haver lugar em nenhuma hospedaria. Os pastores que vivem nos campos, ao relento, são os primeiros que se dão conta deste facto e vêm ver o que se passa. Mas os pastores eram considerados gente de pouca confiança. Vêm uns magos de longe, a quem a tradição lhes juntou serem reis. Enquanto a população bem estante, representada por Herodes e a sua coorte, não se apercebe, não reconhece ou chega mesmo a ter medo e a reagir com violência.
Podemos fazer uma leitura mais literal ou mais simbólica destes acontecimentos. Mas não é preciso grande exercício de razão para demonstrar como os refugiados, os deslocados, as vítimas dos fundamentalismos, os desempregados, as famílias que lutam pela sobrevivência, ou os injustiçados deste mundo, mais ou menos conscientemente, celebram o Natal de forma muito mais próxima da realidade do que nós, que lemos o Observador no quentinho das nossas casas de iPad ou de iPhone na mão. O Filho de Deus faz-se, não só homem, mas homem pobre, deslocado, sofredor, para que todos lhe possam ter acesso. Vem ao mais ínfimo lugar da história humana, para que o encontro pessoal com os que mais sofrem possa ser recriador de uma nova humanidade.
Do mesmo modo, Deus vem, em Jesus, ao encontro do mais ínfimo lugar da história e da vida pessoal de cada um para que cada um possa ser encontrado onde e como está. Ao contrário dos outros encontros, em que tantas vezes temos que provar o que valemos ou esconder quem realmente somos, o encontro pessoal com Deus liberta-nos.
Não, não temos que estar sempre bem e ter a vida toda moralmente ou regradamente direitinha para que Deus nos visite. Nem tudo na vida é bem sucedido e nós experimentamos os seus fracassos na pele. Sonhos que nunca se realizaram, dores causadas por tantas circunstâncias, sofrimento que causámos e que desejaríamos nunca o ter feito ou poder voltar atrás. Ou feridas que nos infligiram e que ainda ardem. Pedidos de desculpa que ainda não conseguimos verbalizar ou perdão que ainda não conseguimos conceder. Relações que eram para a vida e que, afinal, se desfizeram. Perdas que doem de saudade. E a nossa fragilidade e o nosso egoísmo que teimam tantas vezes em gritar mais alto do que o nosso desejo de bem.
Somos frágeis. Por isso Deus se fez frágil, para que o possamos acolher na nossa debilidade. Quem é só forte e bom não precisa de ninguém. Quem é rico de si e não se reconhece pequeno, não encontra lugar para Deus. Aquele que soma sucesso atrás de sucesso e não se permite experimentar a falha, é aplaudido no palco do mundo. Mas vive ensimesmado, no poço da sua autossuficiência. Que solidão!
Ao contrário, o Natal é esse reconhecimento da necessidade dos outros e do Outro na nossa vida. É lá, onde as coisas não correm bem e onde nos sentimos impotentes, que Cristo precisa de renascer. Aceitar a debilidade própria como lugar da encarnação de Deus ajuda-nos a aceitar-nos como somos. E se Deus nos ama na nossa fragilidade, como não sermos mais compreensivos com a fragilidade dos outros? E se Deus vem à nossa realidade, como não sairmos nós do nosso conforto e irmos ao encontro do outro? Por isso, sim, o Natal é o tempo de construir a paz, é o tempo para ganhar a coragem da humildade e da reconciliação, é a época de nos comprometermos realmente com um mundo mais justo.
O Natal não é um tempo de magia, como tanta gente verbaliza, porque Jesus Cristo não é um mágico. Não resolve a nossa vida. Não faz desaparecer as nossas feridas, as nossas doenças ou as nossas dores com pozinhos perlimpimpim. Nem nunca prometeu uma vida mais fácil ou mais confortável a quem a Ele aderisse. Antes pelo contrário: “Quem quiser seguir-me, tome a sua cruz”. Mas uma certeza podemos ter: o seu amor por nós é incondicional. A certeza de que, seja como for a nossa vida, vivemo-la acompanhados e não sozinhos. E por isso a vida ganha sentido. Esta é a alegria do Natal.
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