O dia em que me tornei homofóbico

JOÃO MIGUEL TAVARES    20.12.16   PÚBLICO 

Há coisa de três semanas, estava ao telemóvel na Fnac Chiado quando um senhor se aproximou de mim e me perguntou aos gritos: “Você não gosta de gays, é? Você tem alguma coisa contra os gays?!?” Não chegámos a encetar um diálogo proveitoso. Mantive-me a falar ao telemóvel, virei costas, e os gritos ficaram por ali. No entanto, como a situação foi um pouco embaraçosa – é possível que eu tenha sido vítima de uma micro-agressão –, dei por mim a pensar quando me teria tornado homofóbico.

Durante muitos anos, por incrível que possa parecer, não fui homofóbico. Atrevo-me mesmo a dizer que era um colunista gay friendly, como poderão testemunhar as duas ou três pessoas que acompanham aquilo que escrevo desde 2002. Fui um entusiástico defensor do casamento gay, o que não era habitual à direita, e ainda em 2014 apoiei a lei da co-adopção e lamentei o seu vergonhoso chumbo. Em princípio, estas duas posições deveriam bastar para não ter de aturar um senhor aos gritos a perguntar-me porque é que não gosto de gays. Infelizmente, não chega. No mundo actual, deixou de chegar.
Nos últimos anos escrevi sobre dois temas que me tornaram terrivelmente homofóbico. Um foi a doação de sangue por homossexuais masculinos. O outro foi a comparação da psicóloga Maria José Vilaça entre homossexualidade e toxicodependência, comparação essa que me atrevi a considerar de uma “infelicidade extrema”, mas ao abrigo da liberdade de expressão. Qualquer um dos temas foi abundantemente debatido, e não quero estar a repisar argumentos. Quero apenas constatar que foi a partir daí que fui carimbado como homofóbico, tanto nas redes sociais, como em respeitáveis sites de opinião da comunidade LGBT, como o “Escrever Gay”. A prova de que o carimbo se impôs está no desagradável encontro no Chiado.

Reparem bem: a questão central nada tem a ver com o facto de eu estar certo ou errado em relação a esses temas, ou com a crítica à qualidade dos meus argumentos. Ouço críticas todos os dias, quando falo de António Costa ou de Mário Nogueira, e nunca tive um socialista ou um professor a gritar comigo na rua. Contudo, nos temas ditos “sensíveis”, que envolvam minorias historicamente oprimidas, qualquer discordância em relação a uma posição aceite pela generalidade da comunidade é obrigatoriamente reflexo de um preconceito profundo. Mesmo que eu esteja errado, não estou apenas errado – sou um opressor. Mesmo que eu esteja a ser estúpido, não posso ser apenas estúpido – sou homofóbico. As alegadas vítimas das micro-agressões estão constantemente a micro-agredir os seus alegados algozes.
Na semana passada, Ricardo Araújo Pereira disse que hoje em dia as palavras estão sob uma vigilância tão apertada que já não se podia fazer um sketch utilizando a palavra “mariconço”. A sua profecia auto-realizou-se, acabando ele próprio alvo de inúmeras críticas. O que a comunidade LGBT e seus porta-vozes parecem não perceber é que o policiamento absurdo das palavras não é apenas uma ofensa à liberdade de expressão – é um desastre para a própria comunidade, que cai num excesso de vitimização pateticamente parecido com o da criança que decide matar a própria mãe só para poder queixar-se de ser órfã. A comunidade LGBT está a fechar-se num círculo cada vez mais restrito de susceptibilidades, entretendo-se a descobrir vestígios de homofobia em pessoas que sempre estiveram ao seu lado nos combates importantes. Pior do que ser uma mariquice, é ser uma burrice.

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