Carta aberta ao Canal Panda

BERNARDO VALLE DE  CASTRO    10.12.16


Exmo. Sr. Dr. Pedro Mota Carmo,
CEO da Dreamia, 
Produtora dos canais temáticos
Panda e Panda Biggs


Caro Pedro,
(Desculpe o tratamento pelo primeiro nome, não o tome como falta de respeito. Não é. Se um dia me responder a este e-mail, terei todo o gosto em ser tratado apenas como Bernardo.)
O meu nome é Bernardo do Valle de Castro, tenho 34 anos, casado e pai de três filhos.
Muitas vezes vou a casa de amigos e, para poder estar à conversa com eles, os filhos deles ficam a ver televisão. É um alívio, um sossego!
Sempre que passo os olhos pelos bonecos que estão a dar, no entanto, dá-me aquela sensação de nostalgia: “Os desenhos animados que eu via em pequeno é que eram bons! Desenhos bem-feitos, histórias calmas, giras.”. Mas enfim, como não sou dado a nostalgias, não me interesso em continuo à conversa.

Uma vez por outra, quando tenho um bocadinho mais de paciência, fico a ver um bocado os desenhos animados e de quase-nostálgico, fico preocupado: não só os desenhos animados não são nada como os que eu via em pequeno (nem têm que ser, claro!), como são, a meu ver, feios, com personagens parvas, ridículas, com histórias absurdas, com diálogos maus, deseducativos, graves. Não percebo nada de “como é que se capta a atenção dos expectadores infantis”, mas a sensação que dá ao observador comum é que aquilo é realmente mau…e os miúdos comem com aquilo sem qualquer critério.

Naturalmente, em nossa casa, não temos televisão. Os meus filhos vêm o que eu os deixo ver: o critério sou eu quem lhes dá. Ainda são pequenos. Mais velhos, verão outras coisas, conversando comigo e com a minha mulher, e quando já souberem pensar por eles, verão o que quiserem, claro. Não temos televisão mas temos computador e internet e facebook e alguns amigos com televisão atentos aos programas de dois dos seus canais: Panda e Panda Biggs – o tal da diversão, que os filhos dos meus amigos vêem muito.

Ultimamente tenho visto excertos destes dois canais, que me têm chegado por facebook. Digo sem exagero que, quem tenha bom senso, não pode ficar senão horrorizado com aquilo. Na verdade, não é horrorizado com aquilo: é horrorizado com a hipótese de miúdos de 4, 5 e 6 anos verem aquilo sem qualquer critério, só porque os pais, coitados, querem estar a descansar. Pergunto-lhe, sem ser em tom de provocação (não é mesmo essa a minha intenção. Não me conhece, mas garanto-lhe.), se já alguma vez viu aqueles canais? É assustador.

Fui, então, ver quem era a entidade responsável pelos canais Panda e percebi que era uma empresa chamada Dreamia. A partir daí foi fácil: linked in e cheguei ao nome do CEO da empresa – o seu, desde há 2 anos e 10 meses.
Não sei quais são as funções de um CEO de uma empresa responsável por estes canais. Provavelmente não é sua a função da escolha da programação, mas imagino que seja seu o papel de supervisão geral, nem que seja pelas pessoas responsáveis pela escolha dos conteúdos dos seus canais. Por isso é a si que dirijo esta carta, para lhe expor a minha preocupação e algumas dúvidas que tenho.

Penso nas motivações que o levaram a aceitar este cargo: teria uma ideia para os seus canais? Uma linha orientadora? Um conteúdo que gostava de apresentar? Talvez fosse mais empresarial, o seu propósito, e tenha querido apenas assegurar que os seus canais seriam cada vez mais líderes de audiências, no matter what!

Duvido sinceramente que alguém no seu lugar nunca se tenha posto a questão: “Qual a função da televisão? Dado o incrível poder deste aparelho, interessará questionar-me sobre se a televisão tem ou deve ter alguma função, já que é tão espectacularmente influenciadora? Tudo se deve resumir, realmente, ao descartar absoluto da responsabilidade no «só vê quem quer?»”. Pergunto-me se alguma vez o Pedro se terá feito alguma destas perguntas. Sendo ou não sua a responsabilidade da escolha da programação, o Pedro lidera a entidade responsável por ela. Que poderosa responsabilidade, a sua!

Sei que também tem outros canais – não apenas os vocacionados para crianças. E se, aí sim, me aprece mais claro o “só vê quem quer, seja bom ou mau o conteúdo”, no que toca aos canais infantis penso que a questão não pode deixar de se colocar. Apetecia-me ilustrar algumas passagens dos desenhos animados que passam nos dois Pandas, mas quero manter o nível desta carta e não o baixar ao nível perverso dos desenhos animados infantis que infinitas crianças vêem pelo nosso país fora, formando os critérios de futuros portuguesinhos, formação essa para a qual, em parte, obviamente, o Pedro contribuiu.

Já lhe perguntei antes se o Pedro alguma vez viu aqueles canais. Quero acreditar que sim. Por isso, pergunto-me também se deixaria um filho seu ver aquilo. Espero sinceramente que não. É realmente mau demais para ser verdade.
Tenho curiosidade para, um dia, me sentar numa mesa das vossas, onde estão a decidir que programas comprar para serem reproduzidos nos canais Panda: não consigo mesmo perceber qual o critério que é usado para decisões dessas. Não que a televisão tenha que ter carácter educativo para as crianças, e que esse seja o critério com base no qual compram os vossos programas: só os vê quem quer, por isso podem pôr lá o lixo inteiro, que, no limite, a responsabilidade é dos pais. Agora, o conteúdo daqueles desenhos animados é propositadamente deseducativo! Parece que, nessa tal mesa redonda onde essas coisas são decididas, os seus colegas assumem o direito de colocarem o que querem como uma obrigação de subserviência ao lixo que vos chega.

Se, por hipótese meramente académica, fizéssemos um teste, e colocássemos uma criança a ver exclusivamente os canais Panda durante vários dias, nos seus tempos livres em casa, o resultado seria certamente uma criança perturbada: os seus comportamentos adaptar-se-iam aos dos seus heróis, aos dos seus exemplos, aos dos seus pequenos ídolos animados.
Ups! Isto não é uma hipótese meramente académica: esta é a realidade diária de milhares de crianças portuguesas que estão presas ao lixo que vêem durante duas horas. (Desculpe a linguagem, mas sou mais pela verdade que pelos eufemismos).

Se calhar, afinal, sou saudosista, porque gostava muito mais dos desenhos animados que eu via quando era pequenino, porque recebi com as suas personagens critérios que me acompanharam à medida que cresci: a procura da beleza, da história bem contada, das personagens exemplares com quem nos queremos identificar, do bem e do mal, do certo e do errado, dos crescidos que estão lá para nos ajudar e são referência. Enfim, tudo, absolutamente tudo o contrário do que hoje é possível ver nos desenhos animados que os meus filhos não vêm mas que os filhos de pessoas de quem gosto vêm.

Caro Pedro, não me tome a mal este meu desabafo: é o de alguém naturalmente preocupado com o mundo no qual os seus filhos crescerão, e onde tanta coisa é o contrário absoluto do que lhes quero ensinar. Se faz favor, perceba que não podia ficar calado!

Com amizade,
Bernardo do Valle de Castro

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