Carta de despedida

          MARIA JOÃO AVILLEZ   28.12.16  OBSERVADOR

      Da ilha que era tua, partiste sem pré aviso à beira desse Atlântico que adoravas. Mas nem    eu nem nenhum dos que lá estavam em Alfama, na Igreja de Santo Estevão, te deixaremos   morrer, José Pracana.

Querido Zé, então que foi isso, partires assim sem nos avisares de que partirias de repente e de mansinho, fartei-me de chorar qualquer dia já não tenho lágrimas, tantas perdas. Mas a tua santo Deus quanta pena, quanta falta. Morreste em paz, saíste da tua casa, partiste da tua ilha. Não me deste tempo mas eu tinha que me despedir, e agora essa ilha de S. Miguel que era a tua amada morada e onde eu queria ter estado hoje, transformou -se de súbito em algo de incrivelmente longínquo, intransponível, como se o Atlântico fosse ainda maior e mais forte a separara-nos.
Queria ter-te lembrado como éramos antigos na amizade que começou entre nós com isto do fado, foi primeiro em Birre, lembras-te?, contigo agarrado à guitarra e eu (15, 16 anos?), com um pasmo deslumbrado, seguindo-te o bailado dos dedos. Já nessa altura, há tanto, tanto tempo, se começava a dizer que “ah, este José Pracana é um génio com a guitarra…”, e depois nunca mais ninguém deixou de dizer o mesmo, em todos os tons e todos os lugares.
Eras o “melhor dos fadistas” e como me calha bem a palavra “fadista” posta em ti. Comecei cedo a ver-te tocar, a ir aos sítios onde rodeado dos amantes do fado, fossem quem fossem, profissionais ou amadores, espontâneos ou “caturras”, talentosos ou jeitosos, os acompanhavas a todos, na mais fértil e luminosa das sintonias. Soltando-lhes a voz e ampliando-lhes o sentir, porque ao tocar para eles e com eles, não estava senão a ofereceres-lhe o teu génio. “Tornavas infinita a coisa finita”, como dizia hoje alguém, mas também oferecias a tua atenção e o teu carinho. Nunca se poderá falar de ti, evocar-te, matar saudades, sem de caminho lembrar como eras generoso e terno para com amigos, colegas, conhecidos, desconhecidos. Quem te batesse à porta, batia-te ao coração o que fazia de ti alguém sempre pronto a dar e a dar-se.
Também podíamos agora falar os dois no teu incrível sentido de humor, um humor pronto, disparado, mais rápido que o som, mais rápido que tudo, verve e trocadilhos, graças e ditos, numa cintilação constante. E onde, de forma irresistível, se diluíam uma extrema observação, uma extrema graça. E sempre uma extrema elegância, o que é dizer muito sobre ti. Nos intervalos estudavas o fado com seriedade e rigor, dele sabendo tudo e coleccionando tudo: o que tinhas de investigação feita, papéis, trabalho de casa, registos, descobertas… Foste um precioso arquivo vivo que tão útil foi a tantas e tantos. E agora?
Depois dos intensos anos do fado, de Birre ao “Embuçado”, estivemos muitos anos sem nos ver, que a vida separa as pessoas. Foi a tua ilha que nos re-juntou e com que alegria. Os jantares na tua casa de Ponta Delgada tão bem cozinhados pela Maria Natália, formidável companheira de todas as horas, e as surpresas que nos faziam, quando ao café, vindo não se sabe de onde , surgia uma “viola” e subitamente se passava do riso a um silêncio quieto: era a comunhão do fado saído da tua guitarra e por todos nós partilhada, nessa bendita mesa da “adega” da Rua de Lisboa. Também podia ser na nossa casa de Vila Franca do Campo, onde foste umas vezes com a Maria Natália para festejar a vida e o verão e eram noites de risadas e conversa fiada naquele terraço “dentro” do mar. Mas se a “adega” de Ponta Delgada ou o terraço da Vila Franca falassem, que livro de histórias não se faria…
Deves ter gostado de ver na terça-feira tantos dos “teus” na missa na Igreja de Santo Estevão celebrada para ti com fado puro e corações tristes, guitarras e violas. Foi a Sara Pereira do Museu do Fado que se lembrou, foi o João Braga que a “encenou”. Tantos amigos e tanta saudade, amparada pelo verbo inspirado de um sacerdote que nenhum de nós conhecia – o Padre Jorge, jovem pároco dali –, mas foi como se também ele fosse um dos teus, dando um espesso significado ao que ali estávamos a fazer.
Conheço pouquíssimas pessoas que tenham amado – “servido” – a vida como tu a amaste e serviste. Pouquíssimas pessoas que tenham sido o alvo de um combate tão perfidamente desigual como o teu, pouquíssimas pessoas que com tantíssima dignidade tenham sido capazes de o travar até ao fim. Quase como se nada fosse.
Da ilha que era tua, partiste ontem sem pré aviso à beira desse Atlântico que adoravas. Mas nem eu, nem nenhum dos que lá estavam em Santo Estevão, te deixaremos morrer, José Pracana.
[José Pracana nasceu a 18 de março de 1946 em Ponta Delgada, na ilha de São Miguel, onde morreu na madrugada de 26 de Dezembro, depois de uma luta de três anos com um cancro na garganta. Como guitarrista, tocou vários anos com fadistas como Amália Rodrigues e Alfredo Marceneiro. Foi autor de programas alusivos ao fado para a RTP, entre eles “Vamos aos Fados” (1976) e “Silêncio que se vai contar o Fado” (1992). Em 2005 recebeu o prémio Amália Rodrigues na categoria de Fado Amador.]

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