Afinal o que se passa em Alepo?
OBSERVADOR 15.12.16
Onde fica Alepo e porque é que há guerra na cidade?
Alepo é uma cidade localizada no nordeste da Síria, perto da fronteira com a Turquia. O país, por sua vez, faz fronteira com o Líbano a oeste, com a Turquia, no norte, e com o Iraque no leste. Ao sul fica a Jordânia e a sudoeste Israel. Alepo é a capital de uma província com o mesmo nome e que, antes de a guerra civil ter começado, era a maior cidade do país, com 2,3 milhões de habitantes. Hoje é a frente mais visível de uma guerra que já matou meio milhão de pessoas e desalojou mais de doze milhões, mais de metade da população total do país antes da guerra.
A guerra da Síria começou na cidade de Deraa, no sul do país em Março de 2011, depois de um grupo de jovens ter sido preso e torturado por escrever slogansrevolucionários, ou seja, contra o regime fechado e autocrático da dinastia al-Assad, nas paredes de uma escola. Há vários intervenientes neste conflito, muitos deles tão temíveis como o presidente al-Assad [ver repostas ao lado] mas, à época, o conflito era ainda e “apenas” uma ramificação da Primavera Árabe, com reivindicações legítimas pela abertura do regime. Três meses depois deste incidente, as principais artérias das principais cidades sírias enchiam-se de gente, dia sim dia não, em protestos contra al-Assad e contra a brutalidade das forças de segurança. Daqui até à formação de um braço armado deste movimento foram semanas.
À medida que a rebelião foi avançando, Alepo ficou dividida em duas partes: os rebeldes a Oriente e as forças fiéis ao regime no Ocidente da cidade. E assim permaneceu durante quatro dos cinco anos do conflito. Entre o fim de 2015 e início de 2016, porém, as tropas do governo lançaram uma forte ofensiva sobre as posições rebeldes na tentativa de recuperarem a totalidade da cidade. Alepo é agora novamente controlada pelas forças do regime que detém, assim, as quatro cidades mais importantes do país.
O que sucedeu aos 2,3 milhões de pessoas que viviam em Alepo?
A ONU diz que esta guerra já provocou mais de 400 mil mortos mas há outras organizações, como o Centro de Investigação Política da Síria ou o Observatório Sírio para os Direitos Humanos, que colocam o número entre os 430 e os 470 mil mortos.
A estes números, a ONU soma mais 4,8 milhões de refugiados dispersos por países como a Turquia, o Líbano e a Jordânia. Há 6,6 milhões de pessoas deslocadas dentro do próprio país. Na parte leste de Alepo, segundo Jan Egeland, conselheiro da ONU para a crise humanitária na Síria, ainda há 30 mil pessoas à espera de serem retiradas. Cerca de 50 mil fugiram pelo seu próprio pé nos últimos seis meses, o período mais desesperado do conflito, quando o impasse entre americanos e russos impossibilitou a entrada de ajuda humanitária na cidade.
Como e para onde é que as pessoas estão a ser retiradas?
Tanto o governo sírio como os países que o apoiam já tinham dito que iriam permitir não só a evacuação da zona sitiada — a zona dos rebeldes — como também a dos próprios rebeldes. A operação deveria ter começado quarta-feira, dia 14 de dezembro, mas o cessar-fogo que necessariamente teria que estar em vigor para que se pudessem retirar as pessoas da cidade, em segurança, foi quebrado menos de três horas depois de ter sido acordado. Aqui está um vídeo das operações que foram possíveis durante esse curto período, efetuadas pela SARC (Sirian Arab Red Crescent), uma organização de ajuda humanitária sediada em Damasco, a capital síria.
Como é que se chegou a este ponto?
É impossível dar aqui conta de todas as vozes que já se revoltaram publicamente contra a escalada deste conflito. Há as oficiais e as académicas e, depois, há as vozes dos civis, como a de Bana, um menina síria que mantém, com a mãe, uma conta de Twitter, dando conta da deterioração das condições na cidade. Mas como é que o conflito desceu a este inferno?
A situação humanitária em Alepo é considerada por vários analistas como um crime de guerra. Isto porque, durante vários meses, as forças fiéis ao regime de al-Assad rodearam a zona rebelde num bloqueio hermético que impedia a entrada até de ajuda humanitária — uma tática de guerra proibida pela lei internacional, mas extremamente eficaz porque, perante a escassez de água e de alimentos, qualquer pessoa capitula.
Durante meses, mais de 250 mil pessoas ficaram isoladas em Alepo com acesso muito reduzido, ou por vezes cortado, a ajuda humanitária. O último pediatra da cidade foi morto em setembro. O último hospital foi destruído em novembro. O modus operandi já tinha sido ensaiado noutras cidades antes de o caos em Alepo ter saltado para as primeiras páginas em todo o mundo.
Em abril de 2011, pouco depois do início do conflito, o exército sírio bloqueou o acesso a Deraa, deixando a população sem água, sem medicamentos, eletricidade ou alimentos durante duas semanas. O cerco de Homs, por exemplo, durou três anos, até o governo ter acordado a retirada das famílias que ainda estavam na cidade, uma solução similar àquela que foi encontrada agora para Alepo.
Centenas de pessoas foram mortas em agosto de 2013 num dos mais chocantes ataques do regime que utilizou gás sarin, um agente gasoso 500 vezes mais poderoso do que o cianeto, que afeta o sistema nervoso e que pode matar em menos de um minuto. A morte por contacto com sarin é extremamente violenta.
As pessoas expostas a este gás perdem total controlo das funções fisiológicas do corpo antes dos espasmos convulsivos que advêm da destruição dos pulmões.
Depois de os Estados Unidos terem ameaçado invadir o país, a Síria acordou em destruir as reservas de gás sarin. Mas investigadores internacionais continuaram a encontrar provas de guerra química. Cloro também terá sido usado.
As Nações Unidas dizem que serão precisos 3,2 mil milhões de dólares para ajudar os 13,5 milhões de pessoas, incluindo seis milhões de crianças, atualmente à espera de ajuda humanitária.
Quase 70% da população está sem acesso consistente a água potável, uma em três pessoas não conseguem alimentos todos os dias e mais de dois milhões de crianças já não têm escolas. Quatro em cada cinco pessoas vivem na pobreza.
Mais de 4,5 milhões de pessoas vivem em áreas de difícil acesso, incluindo 400 mil em 15 cidades ou pequenas cidades sitiadas identificadas pela ONU.
Quais são as forças intervenientes nesta guerra?
A comunidade internacional tem dirigido a sua raiva a Bashar al-Assad, presidente da Síria e descendente de uma família que ocupa o poder há cerca de 40 anos. Uma parte da culpa é-lhe justamente imputada, mas há crimes de guerra a serem cometidos por ambos os lados do conflito. A ONU disse que tinha recebido informação de que os rebeldes usaram pessoas como escudos humanos, por exemplo.
O conflito estilhaçou-se em dezenas de forças que se opõem em alguns aspetos e lutam lado a lado em outros.
O diário norte-americano Washington Post tem um mapaem que as várias fações, políticas e religiosas, estão isoladas por cores. Há também um texto de Fareed Zakaria em que o jornalista explica não só a complexidade étnico-religiosa do país mas, também, a culpa das potências coloniais europeias neste conflito ao imporem fronteiras artificiais, necessariamente porosas, entre estados, e elegendo líderes para estes países que, em vez de serem representantes da maioria, são membros de uma minoria privilegiada.
É o caso na Síria. Apesar de a maioria dos habitantes serem árabes sunitas, o país é governado por alauitas, como Bashar al-Assad e a elite próxima dele. O alauismo é um braço do islão xiita, que hoje associamos, talvez erradamente, ao Islão radical. Erradamente porque a conceção que hoje se tem da vertente xiita é associada à dureza teológica da Revolução Islâmica de 1979 no Irão e também ao Hezbollah (milícia libanesa apoiada pelo Irão).
A intenção de Khomeini, no Irão, era a de criar uma espécie de movimento pan-islâmico de libertação contra o ocidente colonizador, um pouco como Che Guevara tentou fazer na América do Sul. A ideia era a de incluir toda a gente, mas a guerra entre o Irão e o Iraque criou a ideia de que xiitas e sunitas não se iriam nunca entender.
Não é por acaso que as linhas do conflito sírio coincidem com as divisões étnico-religiosas no país.
Outro ator interno importante desta guerra são os Curdos, o maior povo sem Estado do mundo, maioritariamente sunitas e segregados em quase todos os países onde estão presentes. Ficou acordado que a Turquia lhes daria um território depois da Primeira Guerra Mundial, mas isto nunca aconteceu. Na Síria sempre foram oprimidos pelo regime de al-Assad e são, também, uma força importante na luta contra o auto-proclamado Estado Islâmico, ou Daesh. O problema é que estão tão empenhados em lutar contra al-Assad como estão em lutar contra o Daesh e no processo de garantir o território autónomo que nunca tiveram, algures entre o norte do Iraque e o norte da Síria.
Os Estados Unidos querem apoiá-los contra o Daesh mas o facto de os Curdos estarem continuamente envolvidos em ataques terroristas em solo turco leva a que sejam considerados desta forma pela comunidade internacional que, não se alia, pelo menos oficialmente, a grupos bombistas.
Além das fissuras religiosas, existem as militares.
A BBC fala em mais de mil grupos rebeldes envolvidos na luta contra al-Assad. O Exército Livre da Síria (Free Syrian Army, FSA) formou-se em agosto de 2011 a partir de dissidentes do exército de al-Assad, mas rapidamente absorveu centenas de outros grupos rebeldes com a Brigada de Mártires pela Síria (Martyrs of Syria Brigades) ou a Brigada da Tempestade do Norte (Northern Storm Brigade).
Paralelamente, e mais preocupante, é a robusta posição da Frente Islâmica que incluiu centenas de grupos jihadistas como o Harakat Ahrar al-Sham al-Islamiyya, Jaysh al-Islam, Suqour al-Sham, Liwa al-Tawhid, Liwa al-Haqq, Ansar al-Sham e a Frente Islâmica Curda, com um contingente de 45 mil militares. No seu manifesto, lê-se que “a Frente Islâmica é uma força política, militar e social independente” que “quer destituir al-Assad e instituir um estado Islâmico”. Apesar de o léxico utilizado apresentar parecenças com os objetivos do grupo que hoje conhecemos como Daesh, a Frente não incluiu oficialmente nem membros da al-Qaeda nem do Daesh mas “abraça todos os irmãos que queiram vir juntar-se à jihad”, o que amedronta a comunidade internacional que não apoia oficialmente este grupo.
O caos na Síria levou a que al-Qaeda presente do Iraque enviasse homens para a guerra na tentativa de estabelecer um califado. É aqui que nasce o Daesh. A al-Qaeda dividiu-se entre o Daesh e a Frente al-Nusra, dois grupos cujos métodos selvagens de imposição territorial estão bem documentados, nomeadamente pelos próprios, em vídeos no Youtube, onde são vistos a decapitar “infiéis”.
Apesar de estar a perder terreno e de não ser um dos atores principais em Alepo, o Daesh foi um dos maiores beneficiários do esvaziamento de poder na Síria, tendo chegado a controlar províncias no Iraque e na Síria.
Mais recentemente chegaram ao conflito as potências internacionais que modificaram o equilíbrio da guerra em favor do regime. Os Estados Unidos entraram no conflito contra o Daesh em 2014, mas apoiavam também as forças rebeldes com armas e treino militar.
Um ano mais tarde, a Rússia começou a bombardear “terroristas”, mas os rebeldes sempre disseram que a luta não era contra o Daesh, antes contra o movimento de libertação que também contém terroristas.
O Irão e a Rússia começaram, então, um apoio mais consistente ao regime de al-Assad e as posições rebeldes foram enfraquecendo porque os Estados Unidos nunca se envolveram na guerra, ao lado os rebeldes, com o mesmo fervor com que o Irão e a Rússia se envolveram a favor de al-Assad. Apesar de a Turquia, o Qatar e a Arábia Saudita serem abertamente aliados da causa rebelde, a sua presença quer no ar (como a Rússia) quer no solo (como o Hezzbollah aliado do Irão) não se conseguiu equiparar à dos apoiantes de al-Assad.
O que é que pode acontecer agora que Alepo foi recapturada?
A reconquista de Alepo é “não só uma questão de recuperação territorial mas, também, uma forma de o regime e os seus aliados poderem chegar à mesa de negociações numa posição fortalecida”, disse à Al Jazeera Kheder Khaddour, investigador sénior no Carnegie Middle East Center, em Beirute.
Mas o “fim” da guerra aberta não é o fim do sofrimento na Síria. Ao contrário daquilo que aconteceu em Alepo, para onde todo o mundo se voltou em condenação uníssona da guerra, quando as forças do regime entrarem finalmente em Idlib, para onde civis e rebeldes rendidos estão a ser enviados, não haverá nenhuma potência ocidental disponível para lhes socorrer. É que a província de Idlib é controlada pela al-Nusra, que recentemente mudou de nome e se desfiliou da al-Qaeda, mas que mantém uma ideologia extremista a que ninguém deste lado se quer associar.
Soluções não há, mas há formas de, pelo menos, impedir que o sofrimento destas pessoas, que além de membros das suas famílias perderam as suas cidades, se prolongue infinitamente. A maioria dos analistas falam na criação de zonas “seguras”, protegidas por uma missão internacional, onde civis e rebeldes possam viver até que haja garantias de que não serão perseguidos.
O jornal The Nation, que tem um projeto de jornalismo-cidadão através do qual recebe e edita cartas anónimas de cidadãos em zonas de conflito, publicou recentemente um texto em que Ammar Shawki, um pseudónimo, dá conta da vida em Idlib. Nesta altura, Alepo ainda não tinha caído.
“Homens de máscara e armados patrulham a cidade. Há estradas completamente bloqueadas e o medo paralisou a economia. Quem é que vai começar um negócio quando chega a haver doze ataques aéreos por dia? Todos os que podem sair daqui fazem-no assim que chegam, tal como a minha família, que se isolou no campo. Mas a vida pode ficar muito pior. Se Alepo cair, o próximo cerco poderá ser imposto aqui. As pessoas estão a armazenar comida. Sabemos que sentiremos aqui a força toda da vingança de al-Assad contra os rebeldes, porque é aqui que estão os resistentes”.
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