Carta ao meu avô

ADOLFO MESQUITA NUNES  19.12.16 VISÃO

É estranho, mas não preciso de pensar muito para saber por onde começar esta carta. Sei exatamente o que quero dizer primeiro, agora que chegaram os últimos dias. Talvez porque a luz do dia – um daqueles dias com muito sol e muito frio, os meus dias favoritos na Covilhã –, permita distinguir bem o começo e o fim da estatura do meu avô: um compromisso firme com os outros. 

Pode parecer incomum que comece pelos outros e não por nós, eu e ele, a família e ele. Mas a verdade é que os outros foram sempre do meu avô. Tão dele que cheguei a invejá-los, sem entender. E o meu avô era isso, um homem comprometido com os outros. Não com a sua cidade, mas com os outros, não com as suas ideias, mas com os outros, não com os seus projetos, mas com os outros. Foi assim que eu aprendi a ver o meu herói e sei que tenho de partilhá-lo com muitos. 
Quem verdadeiramente ama os outros conhece-lhes o nome e aperta-lhes a mão. E o meu avô sabia-lhes os nomes, não sei como nunca se esqueceu de nenhum. Tinham passado, histórias, vinham de algum lado e paravam sempre no meu avô antes de seguir viagem. E também ele, tantas vezes, fez dos outros apeadeiros da sua viagem. Há outros antes de nós. Um a um, tantos, mesmo muitos, sempre primeiro, sempre antes. Percebi isso devagar, sempre a olhar para ele. 

Nem sempre foi fácil compreender o serviço aos outros, precisamente porque os outros não somos nós. “Quem não vive para servir, não serve para viver”. Ouvi isto vezes sem conta, com orgulho, sem pesar, como lema, nunca como mandamento. Julguei entender das primeiras vezes, cheguei a pensar-me fiel seguidor. Mas percebo hoje, só hoje, que afinal não entendi nada, porque não conheço, não alcanço, por mais que me esforce, essa dimensão de amor aos outros, não ao abstrato, mas aos outros que temos connosco, como se neles estivesse a voz que nos protege da mudez, como se deles fosse o sopro inicial. 
Repito muito a palavra outros, eu sei. Mas ouvi-a tantas vezes, tantas, que não sei lembrar o meu avô sem a dizer uma e outra vez. Era assim o meu avô.
“Quem não vive para servir, não serve para viver”. Lembro--me do dia em que escolhi guardar essa frase na minha vontade, para que ela ficasse para sempre, para depois deste dia. E sei hoje, naquela mão na mão, que ela me foi transmitida – a mais relevante herança, não preciso de outra. Garanto, avô, que a recebi, que a farei minha, que farei por entendê-la. 
Esse compromisso com os outros fez-me ainda descobrir aquele que para mim é hoje o valor primeiro, o da liberdade. Só ela confere sentido autêntico ao que fazemos. Praticar o bem porque é assim, porque a isso estamos obrigados, não deixa de ser bom, mas não é o bem. Esse é exclusivo daqueles que o praticam porque sim, porque nele se encontram, porque livremente o desejam, como o meu avô. Inteiramente livre, nunca coagido, e por isso tão dependente da entrega aos outros.
Nunca me deixou acreditar que a liberdade era um direito, um egoísmo, mas antes uma vocação, uma entrega. Porque livres, amamos. Sendo livres, podemos dizer não, seguir. Fiz-me liberal assim, pelas mãos de um democrata-cristão, a quem tudo devo, até isso. E segui pela liberdade, descobrindo--lhe a razão da minha ação política. E se falo disto, avô, é porque houve sempre tanta política em nós, do acordar ao deitar, que não seria normal uma conversa sem política. 
Não esqueço todas as vezes que o democrata-cristão avô ajudou, incentivou, compreendeu, abraçou, o liberal neto, percebendo sempre, porque a praticava assim, que é a liberdade que nos qualifica, mesmo quando nos afasta, nos leva por caminhos diferentes. Sucedeu com todos os polémicos votos ou declarações, que outros viram como provocações, mas que dele sempre mereceram um abraço. Quis sempre que tivesse orgulho em mim e esse abraço fez-me acreditar que estava no sítio certo. Não quero perder esse sentimento.
Se soube onde começar esta carta, percebo agora, talvez porque a luz se vai, que não sei como ou onde terminar. Há algo de assustador, porque inaugural, neste dia. Como se, de repente, percebesse que não sei andar ou falar, apenas imitar, seguir. Não está em causa aprender a continuar, mas não sei quem serei a partir de aqui. Pela primeira vez, desde que o meu mundo é mundo, não terei o meu avô para o descobrir comigo. E não sei se serei capaz de agir aquela frase sozinho. Sem o meu avô. Sem o meu herói. 
(Artigo publicado na VISÃO 1241, de 15 de dezembro de 2016)

Comentários

Mensagens populares deste blogue

OS JOVENS DE HOJE segundo Sócrates

Hino da Padroeira

O passeio de Santo António