Uma campanha

Público 2012-11-13 Pedro Lomba

Isabel Jonet foi à televisão dizer duas ou três coisas triviais sobre a pobreza. O que disse, mesmo de forma inábil, é um lugar-comum em todo o Ocidente: temos de "reaprender a viver mais pobres". Este tom cru e missionário, que lembra em grande medida o velho catecismo das virtudes cardeais e teologais, como o elogio da temperança ou da caridade por exemplo, serviu para atear um incêndio.

Faltou a Jonet a virtude de compreender como funcionam os media. Uma frase mais crua e susceptível pode facilmente virar-se contra quem a profere. Basta que do outro lado haja uma legião de passionários, preparada para a explorar e distorcer. Isabel Jonet, na sua ingenuidade, não imaginou que existisse esse outro lado. Mas existe. De repente, uma voluntária que montou e dinamizou, do nada, uma rede de distribuição gratuita de alimentos pelos mais necessitados começou a ser sujeita a uma campanha de ódio como há muito não se via. Uma carta de uma militante do PCP acusava Jonet de usar "a fome como arma política". Um conhecido blogue de militantes do Bloco de Esquerda apresentava Jonet como a "meretriz da caridadezinha". Noutra carta do chamado Movimento dos Sem Emprego, além do tom de intimidação de quem mostrava conhecer aspectos da sua vida privada, escrevia-se que "o mundo de Jonet é o mundo da classe dominante, do privilégio, da riqueza (...), dos estereótipos que ajudam a lavar o sangue que lhe escorre das unhas". Reparem na última frase. Não é só mau gosto.

Uma pessoa lê tudo isto e pergunta: de onde vem o ódio? Não pode ter sido o moralismo de quem advoga mais moderação nos gastos e nos consumos, porque é inócuo. Durante anos, a esquerda (e uma parte da direita) censurou o consumismo desenfreado, o desperdício de recursos, a cultura materialista das sociedades da abundância capitalista. (E se Jonet tivesse dito algo parecido, talvez passasse por heroína.) Não pode ser só a caridade, palavra maldita, que no pensamento cristão quer dizer amor, que no pensamento judaico significa um acto de justiça, de correcção, o cumprimento de um dever, que na filosofia de grandes autores contemporâneos (como Alasdair MacIntyre) jaz no centro das virtudes de dependência que sustentam o enquadramento comunitário de que o estado moderno precisa.

O Banco Alimentar faz caridade. Mas também a Voz do Operário faz caridade: possui um programa de "emergência" aos carenciados, com refeições, e até recebeu apoio do Banco Alimentar, como se lê no seu Relatório de Actividades. E também o Estado faz caridade, de muitas maneiras, pelos mais pobres e menos pobres.

Dessa caridade já não se fala, deixou de ser um problema. Qual é então a origem deste ódio? Acontece que Jonet faz mesmo o que outros não fazem. Há 20 anos que lida com a realidade concreta da pobreza. Conhece os mais pobres. Conhece os que dão e recebem. Assiste pessoas carenciadas estando perto delas. Mas é uma voluntária que tem contra si a dicção e a classe, não é uma revolucionária de passeata ou convicção. Não vê os pobres como uma abstracção conveniente, como uma ideologia para a revolução e para a luta política. Não quer destruir o Estado social, mas alguns defensores do Estado social acham que têm de a destruir.

Esses indignados que se levantaram não querem na verdade saber da pobreza. Querem a implosão do sistema, que gerará ainda mais pobreza, para poderem aparecer como os seus profetas. Vivem de abstracções em nome de abstracções. Jonet é um alvo, uma concorrente, uma intrusa. Porque há quem esteja e quem não esteja autorizado a falar pelos mais pobres.

Comentários

margarida soares franco disse…
Excelente artigo. A esquerda acha-se a única com direito a falar dos mais desfavorecidos, ou pobres, e arvorar para si a sua defesa...nada mais triste, pois o incitar à revolta não mata a fome e essa gente, sim, recolhe protagonismo. Falam, falam, falam, mas acodem aos pobres com manifestações. Acordem, pois já estamos FARTOS de demagogias !!!!!!!

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