«Deus não pode ser visto como Pai Natal» Entrevista ao Pe. José Tolentino
José Tolentino Mendonça em Entrevista
DESTAK | 21 | 11 | 2012 10.30H Isabel Stilwell | editorial@destak.pt
O amor e a amizade têm a mesma raiz?
O nosso coração é só um, e nesse coração habitam sentimentos que têm a mesma raiz de afecto, de relação com o outro e connosco mesmos, mas a expressão desses sentimentos e a sua intensidade é diferente. São primos.
Quis reabilitar a amizade?
Hoje a palavra amor corre o risco de se tornar gasta. Para tudo utilizamos amor, como se não houvesse uma gramática para declinar os sentimentos profundos do nosso coração. Ama-se o chocolate, o pai, a mãe, o marido, a música que está no top. O que neste livro proponho é uma viagem espiritual e cultural, em que se mostra como a amizade tem sido uma constante decisiva na história da humanidade.
Diz que Deus, como um grande amigo, só deseja que sejamos nós próprios. Mas mandaram-nos ser como os santos...
Os modelos são importantes na educação. Quando a mãe dá a papa a uma criança, abre também a boca, num mimetismo. O bem faz bem, e o contacto, a admiração por quem viveu uma vida plena é um estímulo. Outra coisa é hipotecar aquilo que se é, em nome de um ideal. A ideia de perfeição é um equívoco, a formação não é colocar-nos numa forma, mas uma inspiração. É preciso mudar a forma como se vive e transmite o cristianismo.
Vivemos presos da culpa?
Quando escrevi esta Teologia da Amizade foi sobretudo para isso, para dizer que Deus não se intromete, não invade. Dá-nos liberdade, alegra-se com as nossas alegrias, ampara as nossas dores, e é capaz de dizer uma palavra que nos reorienta, mas faz isto com aquela discrição que é típica da amizade. É muito importante pensar a relação com Deus como de amizade.
O problema é que, no fundo, imaginamos Deus à nossa imagem e semelhança. Eu, por exemplo, não concebo um Deus sem sentido de humor...
E Deus tem sentido de humor (risos). Aliás, um dos capítulos é sobre o humor de Deus, porque é impossível falar de amor e amizade sem falar da capacidade de nos rirmos de nós próprios, da alegria profunda e quotidiana das nossas vidas.
Também não é bombeiro.
É muito importante não ficarmos numa lógica providencialista, como se Deus fosse o resolve tudo da nossa vida, o “ai ai” a quem apelamos continuamente. Devemos manter com Ele uma relação criativa, sincera, feita de perguntas. Não podemos reduzir a oração a uma lista de pedidos.
Uma carta ao Pai Natal?
Mas Deus não é o Pai Natal. Temos de relacionar com ele as nossas vidas, não as nossas necessidades.
Para não ficarmos presos «no porque é que permite que alguns sofram e outros não»?
Exactamente, exactamente. A lógica do providencialismo primeiro parece uma grande afirmação de Deus, mas realmente é um nó cego, porque depressa se torna num Deus terrível, aparentemente indiferente ao sofrimento do mundo.
Se as orações não devem ser uma carta ao Pai Natal, devem ser o quê, nomeadamente em momentos difíceis?
Devemos rezar para abrir o coração à vontade de Deus. Rezar para viver bem, em plenitude, todos os momentos da vida, inclusivamente os de contradição, de ferida, de doença, de crise. Rezar para que sejamos capazes de tirar partido desses momentos. A esperança cura, enquanto a desesperança adoece-nos. Kierkegard dizia que a angústia é doença mortal e cada vez mais vemos que é assim. A paz e a serenidade que o caminho espiritual pode oferecer são uma terapia.
Os amigos conhecem-se bem. Mas na prática a maioria de nós tem uma licenciatura nisto ou naquilo, mas apenas a 4.ª classe do catecismo…
Os crentes em Portugal são uma minoria. Hoje em dia são mais os católicos culturais, que interiorizaram os valores do cristianismo, do que os católicos da prática, da pertença. E a Igreja e os cristãos têm o dever da explicação, não podem dar por adquirido que um determinado conhecimento se transmite, que faz parte da gramática cultural, porque não faz, deixou de fazer. Hoje, Portugal é uma terra de missão.
Como é que isto aconteceu?
Julgo que, entre outras coisas, o facto de o cristianismo ter sido a religião social teve e tem o seu preço. Não era uma adesão de coração, era uma tradição. Mas a fome de Deus, de infinito, de sentido, de razões de viver, isso existe no coração das pessoas.
Diz que o cristianismo é a chave da cultura ocidental. Sem essa chave não percebemos o nosso passado?
Sem as chaves cristãs entramos no Museu de Arte Antiga e sentimo-nos como se estivéssemos perante as estátuas na ilha de Páscoa, tudo parece um enigma. Hoje há um debate, um debate laico, em que se pensa se da mesma forma que na escola se ensina a Odisseia e a Ilíada, não se devia ler também a Bíblia. A Bíblia é um código para abrir a cultura ocidental. Não possuir esse código é ficar como um deserdado, expropriado de um património humano e cultural de excelência. Sem perceber uma pintura, sem perceber Gil Vicente, Camões…
Diz que os cristão voltam a sê-lo por decisão pessoal...
Sim, e isso é uma nota de grande esperança, uma nova oportunidade. Quando se faz uma opção há um caminho, um compromisso, que não vem por um automatismo sociológico qualquer.
Fala de Marta e Maria. Sempre garanti à minha mãe que Jesus preferia a que ficava a falar com ele. Diga-me que tenho razão.
(risos) Todos temos um pouco de Marta e de Maria. Não é que o trabalho dos tachos não seja necessário, mas como dizia Ruy Cinatti, “Quem não me deu amor, não me deu nada” . Cada pessoa que nos visita traz consigo uma história, e a melhor dádiva que podemos dar é tempo para que o outro se conte, e se diga. O nosso activismo às vezes é uma barreira na relação. Precisamos de uma pedagogia da audição, de nos escutarmos mais uns aos outros: há demasiada vida calada, vida submersa.
Biografia
NASCEU. No Machico, na Madeira, no dia 15 de Dezembro de 1965. Foi ordenado padre em Julho de 1990.
ESPECIALISTA. Em Estudos Bíblicos, de que é professor, sendo “a relação entre o Cristianismo e a Cultura uma das ideias-chave do seu percurso”.
LIVROS. Mais de 20 livros, sobretudo poesia, mas também prosa e ensaio. Muitos deles estão traduzidos em diversas línguas.
PASTORAL DA CULTURA. É o responsável nacional, tendo sido também nomeado Consultor do Pontifício Conselho para a Cultura, no Vaticano. Foi um dos 300 artistas recebidos na Capela Sistina pelo Papa em 2009, e recorda o «Até breve», com que Bento XVI se despediu de todos nesse dia, como um momento muito comovente – «era mestre, mas despediu-se com profunda amizade, como ali fôssemos todos iguais».
DEUS NA COZINHA. É o nome de um dos capítulos do seu último livro, 'Nenhum Caminho será Longo', e que acaba por ser o pretexto para falar do ano académico de 2011-2012 que acaba de passar na New York University, integrando uma equipa de investigadores do tema “Religião e Espaço Público”. Prometemos voltar para falar sobre porque é que os amigos se fazem e mantém à mesa. Para nosso alívio, não parece importar se a mesa é mais ou menos farta.
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