Já encomendaram a máquina de fazer notas?

José Manuel Fernandes
Público, 30/11/2012 - 00:00

O acordo sobre a Grécia mostrou como a UE não é, nem é bom que seja, uma "união de transferências"

A culpa é, provavelmente, dos estivadores. Ou talvez seja do Arménio Carlos, da CGTP. Ou de um dos mascarados dos Anónimos. Nos últimos dias todos estes personagens não têm dado descanso ao largo em frente da Assembleia da República. Suponho eu é devido à sua tão assídua presença que não tem sido possível levar até lá o camião com a impressora. A impressora de notas. Aquela que, imagino, deve ter sido encomendada para instalação na Fundação Mário Soares. Aquela com que, acrescento eu, o variado grupo de peticionários que ontem entendeu dirigir-se, por "carta aberta", ao primeiro-ministro crê ser possível resolver os problemas nacionais. Porque certamente terão uma solução na manga, já que, como sentenciam, Passos Coelho deve "retirar as consequências políticas que se impõem, apresentando a demissão ao senhor Presidente da República". Só não se sabe exactamente a que eventos se referem já que, numa democracia parlamentar, é do outro lado da rua, e não nas salas da fundação do ex-Presidente, que se determina se um Governo tem ou não condições para governar. Um dessas condições é ter um Orçamento aprovado. Precisamente o que aconteceu esta semana.
É verdade que o Orçamento aprovado é aquele de que ninguém gosta. Sobretudo porque tem impostos a mais. E também, para um número crescente de portugueses, porque tem cortes a menos. Cortes nas despesas do Estado. É um Orçamento que tem uma única vantagem, se a tiver: orçamentos como este, não queremos mais, nunca mais. O que ainda não sabemos é como vamos evitá-lo. O caminho da máquina de imprimir dinheiro não parece, mesmo assim, o mais razoável.
Falo da máquina de imprimir dinheiro porque a extensa lista de "personalidades" que assinam aquele documento não tem apresentado, apesar da sua constante presença no espaço público, muito mais alternativas ao drama que vivemos. E que é um drama que começa numa realidade simples: não há dinheiro. Era assim quando chamámos a troika, continua a ser assim hoje. Na altura quem nos emprestou dinheiro não estava disponível para nos subsidiar a fundo perdido e isso continua a ser verdade hoje. Quem ainda alimentasse dúvidas ou esperanças teve esta semana duas ocasiões para as desfazer.
A primeira foi quando a União Europeia não chegou a acordo sobre o seu orçamento para 2014/2020. Estamos a falar de um orçamento que representa apenas um por cento da riqueza criada em toda a União, mas mesmo assim os países que são contribuintes líquidos querem diminuí-lo. Exacto: diminuí-lo. Isso não impede que haja quem continue a falar de federalismo e de "solidariedade europeia". Será que ainda não perceberam que a pressão dos eleitorados europeus é para diminuir o orçamento comum, não para o aumentar? Não viram as deliberações de parlamentos tão diferentes como o britânico, o finlandês ou o alemão? Já aqui escrevi e repito: muitos economistas assumem em privado que o euro não sobreviverá sem um orçamento da zona monetária situado entre os cinco e os sete por cento do produto, pois só assim haverá margem para acorrer às regiões deprimidas - as de hoje e as do futuro - através de estabilizadores automáticos. Os países - e os povos, e os seus dirigentes eleitos - nem um por cento querem dar, ou aceitam partilhar. Por que insistem então os nossos vanguardistas na loucura do federalismo? Será que querem fazê-lo à maneira leninista, contra os povos mas supostamente em seu nome e para "seu benefício"?
Como se este sinal não fosse suficiente, o acordo a que se chegou para a Grécia também foi muito elucidativo. O FMI, que não é um país nem uma instituição europeia, tinha recomendado o óbvio: um perdão verdadeiro da dívida grega. O acordo acabou, em contrapartida, por só prever um perdão mínimo, condicional e problemático. Porquê? Porque um perdão da dívida grega afectaria directamente os países que lhe emprestaram dinheiro. A Alemanha, mas também Portugal. Até agora, apesar da resistência de algumas opiniões públicas, a ajuda à Grécia ainda não custou nada aos contribuintes do Centro e do Norte da Europa. Já se houvesse um perdão verdadeiro, a conta iria directamente aos seus bolsos. O mecanismo agora criado dilui e adia essas perdas directas. Mesmo assim os editoriais da imprensa alemã, por exemplo, não deixaram de chamar a atenção para a factura a pagar.
Tenho para mim que, mais tarde ou mais cedo, os contribuintes alemães, como os finlandeses ou os holandeses, ou os franceses, acabarão por passar o cheque. Aos gregos, mas também a nós. Quando isso acontecer, ou os países da periferia já colocaram todas as suas contas na ordem e mudaram realmente de hábitos, ou os nossos "benfeitores" vão-nos querer bem longe das suas carteiras. O que eu não acredito ser possível, nem desejável, é a criação de uma "união de transferências". A democracia europeia não lhe sobreviveria. Nem a democracia nos principais países europeus. Não há nenhuma razão cultural, económica ou mesmo moral para os alemães terem de ser eternamente mais generosos com os povos do Sul do que os catalães querem ser com os seus vizinhos andaluzes ou galegos. A única coisa que me espanta é que haja quem veja com bons olhos o egoísmo soberanista de Barcelona enquanto pede cheques em branco aos "moralistas protestantes" do Norte da Europa.
O que é mais desesperante neste debate é que o Governo, com a sua inabilidade política, o tornou quase impossível. Pior: o mais desconcertante é que este Governo, dito o mais liberal de sempre, mostra muito pouco impulso reformista e muita pouca vontade, ou determinação, para defender reformas realmente diferenciadoras. Numa altura em que o país continua a caminhar à beira de algo ainda bem pior, a meta dos "quatro mil milhões" tem a vantagem de ser concreta mas parece arbitrária. E o conceito de "refundação" continua a não ser preenchido.
Esta semana, por exemplo, o primeiro-ministro comprou uma inevitável polémica ao sugerir que poderia passar a haver co-pagamentos no ensino secundário. Seriam, de novo, os mesmos a pagar, mesmo devendo o tema ser discutido. Em contrapartida nada disse, ou sugeriu, sobre uma alteração do actual modelo centralista e monolítico de escola pública, nada disse sobre o direito que mesmo os filhos das famílias mais pobres deviam ter de acesso às boas escolas privadas, nada referiu sobre liberdade de escolha num regime em que o Estado, falido como está, deixasse de ser o fornecedor quase universal dos serviços para ser antes o garante de que todos têm acesso a esses serviços.
Há momentos em que o Governo parece actuar de forma inteligente - foi inteligente, por exemplo, a forma como se promoveu, com o acordo da maioria dos parceiros sociais, o pagamento de metade dos subsídios em duodécimos, tal como tem sido hábil a forma como se promoveu a reforma dos portos e o fim do regime protegido na profissão de estivador -, mas outros onde as confusões se sucedem - caso das excepções aos cortes, como a que foi inscrita no Orçamento e beneficia os controladores aéreos, numa aparente cedência a mais uma ameaça de greve, ou o recuo nos acordos com as universidades, um gesto que evita a fronda dos reitores mas em nada contribui para a necessária reestruturação de um sector com oferta inflacionada.
O problema não está, como julgam os assinantes do abaixo-assinado "peticionário", de a austeridade necessária para cumprir as metas do défice acordadas com a troika ultrapassar o anunciado na campanha eleitoral - o problema está em que boa parte da agenda liberalizante com que Passos Coelho se apresentou às eleições está a ficar no tinteiro. A austeridade há-de passar. Já a possibilidade de realizar, com um consenso alargado, reformas que poderiam efectivamente modificar o modelo de Estado omnívoro que construímos ao longo das últimas décadas (e a que só por mórbida ironia chamamos "social", pois é sobretudo egoísta a favor das gerações que têm ocupado o poder), essa pode não regressar.

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