A grande fraude

JOÃO CÉSAR DAS NEVES
DN 2012-11-26

E se boa parte das nossas certezas acerca da história mundial fosse realmente falsa? Se nos últimos três séculos a classe intelectual estivesse dominada por uma ideologia enganadora que a levou a distorcer os factos para satisfazer preconceitos dogmáticos?

No seu recente livro The Triumph of Christianity (HarperOne, 2011) o reputado sociólogo da religião Rodney Stark faz um resumo de 40 anos de carreira e de uma impressionante lista de trabalhos de outros autores. O tema explícito é o paradoxo a que dedicou grande parte da sua atenção: "como foi possível que uma obscura seita judia se tenha tornado na maior religião do mundo?" (p.1). Só que, apesar de cobrir esparsamente os dois mil anos de história, pode dizer-se que o verdadeiro assunto do volume é bem diferente: derrubar uma enorme quantidade de mitos, erros e manipulações que a historiografia dos últimos séculos acumulou sobre a Igreja.

Muitos dos resultados são bem conhecidos dos especialistas, mas continuam desprezados nas visões populares, onde persistem velhos embustes. A lista é impressionante. O sucesso da expansão cristã no Império Romano não se ficou a dever à decadência do paganismo, revolta de escravos ou favores de Constantino, mas ao facto de os cristãos, graças à sua caridade, "viverem mais tempo que os seus vizinhos pagãos... não 'descartarem' as crianças femininas e as mulheres cristãs não terem a mortalidade substancial por abortos feitos num mundo sem antibióticos" (p.417). Também é falso que o paganismo romano desapareceu devido à perseguição da Igreja triunfante. Antes "desceu lentamente na obscuridade" (p.198).

A Idade Média europeia não foi uma "idade das trevas" de miséria e obscurantismo, mas uma época brilhante da história do mundo, pois a ausência de impérios eliminou a escravatura e monumentos grandiosos, e o génio humano pôde virar-se para descobertas pragmáticas, das esporas aos óculos e moinhos, passando pelo capitalismo (p.242-5). As cruzadas não foram uma bárbara agressão colonial cristã contra muçulmanos inocentes. Não só nasceram de séculos de tentativas islâmicas de colonizar o Ocidente, mas nelas os nobres arruinavam-se em busca da salvação eterna (cap.13). A religião não é inimiga da ciência, mas foi na Igreja que nasceu e grande parte dos maiores cientistas são e sempre foram devotos (cap.16). "A Inquisição Espanhola foi um corpo bastante moderado, responsável por poucas mortes e salvou muitas vidas por se opor à caça às bruxas que varreu o resto da Europa" (p.418). "A afirmação de que a religião vai em breve desaparecer à medida que o mundo se torna mais moderno é apenas ilusão optimista de académicos ateus" (idem). Estas afirmações, e muitas outras, são demonstradas com apelo a números, factos e investigações sérias e comprovadas.

O livro não é uma obra de apologética, e estão bem presentes as misérias da Igreja na história (cap.15, 17, 20, 21). O propósito é antes demolir mistificações acumuladas ao longo de décadas, que se tornaram avassaladoras na opinião pública. Aliás, mais que para a história do cristianismo, o valor do livro está no que revela da nossa história intelectual.

Como foi possível empilhar tantos dislates e burlas, todos no mesmo sentido? É evidente que desde o Iluminismo muitos académicos estão convencidos que a religião é o inimigo da verdade e humanidade, e tomaram a missão de desmascará-la e denunciá-la. Lançam-se na tarefa com o mesmo zelo e fervor dos missionários religiosos, só que ao fazê-lo violam os princípios mais sagrados do seu próprio credo científico, enganando, distorcendo, manipulando.

A Igreja sempre prosperou na perseguição, pelo que o ataque lhe foi benéfico. Mas é assustador pensar no enorme poder que alguns pseudocientistas têm, se usarem a sua posição de prestígio e influência para veicular dogmas pessoais. Voltaire e Gibbon, como hoje Richard Dawkins ou Peter Berger, são um perigo para a liberdade maior que Napoleão, Hitler ou Mugabe. Manipular a mente é pior que controlar leis e polícias.

Comentários

Francisco Melo disse…
Não deixa de ser curioso a acusação de que a Idade Média usava a autoridade no seus argumentos, autoridades como Aristóteles, por exemplo. De facto, Aristóteles é uma autoridade bem séria, pois nunca procurou ficar na opinião, mas usar a razão humana para demonstrar as suas teses. Contudo, a idade Média, citando autoridades legítimas, como essas e outras, jamais se fundou nelas para conclusões de ciência, antes procurou demonstrar as suas teses. Que vemos hoje, em relação aos acusadores da Idade Média usar da autoridade? Qualquer um, até um Voltaire imoral, ou alguém que tenha fama nos mass media, é autoridade no que diz, mesmo que não vá além duma mera opinião que não passa de erro. Acusam a Idade Média os que abusam da autoridade a ponto de qualquer um tornar-se autoridade, se ficar famoso, tiver dinheiro ou agradar a grupos de poder. O que dizem, mesmo que seja disparate, é assumido como verdade. Isso, jamais aconteceu na Idade da Luz.

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