Isabel Jonet e a arrogância da esquerda ululante

Blasfémias, 2012-11-09
José Manuel Fernandes


Não há nada como em tempos ter feito parte de uma tribo da esquerda jacobina (no meu caso, uma tribo marxista-leninista-maoista) para entender muito bem a fúria da esquerda ululante face às declarações de Isabel Jonet na SICN. Ela não surpreende: é apenas um subproduto da arrogância intelectual dos que, à esquerda, se sentem intérpretes do sentido da História (com H maiúsculo) e proprietários monopolistas da preocupação com o destino dos mais pobres.
A Helena já aqui referiu como os nossos profissionais da indignação são selectivos e só viram as suas baterias para os que se situam fora da confraria e não lhes prestam vassalagem. É uma observação pertinente e reveladora porque o que realmente perturba essas almas é sentirem ameaçada a posição que acham que desempenham nesta santa terrinha: a de intérpretes do destino da Humanidade e, nesta, dos que eles designam como explorados.
A indignação – que nalguns casos assumiu proporções de real obscenidade, tal a grosseria dos seus protagonistas – contra Isabel Jonet não deriva de ela ter dito algumas coisas de bom senso, como pode comprovar quem se der ao trabalho de ver e rever o vídeo, como eu próprio fiz. Também não tem nada a ver com ela supostamente ter defendido que não havia miséria em Portugal, pois resulta óbvio que estava a referir que não existe em Portugal a miséria que ela viu na Grécia.
O primeiro problema da esquerda jacobina com Isabel Jonet é que ela ajuda os pobres – e os pobres são propriedade dessa esquerda, pelo menos no seu entendimento. Pior: ajuda-os com actos concretos que aliviam o seu sofrimento, não com palavras, proclamações e apelos à revolta que muitas vezes têm como efeito concreto piorar a vida dos mais fracos. No imaginário dessa esquerda toda a compaixão está reservada para os da tribo marxista ou descendentes, os restantes não passam de cínicos que, como agora acusam Isabel Jonet de também fazer, utilizam os pobres com fins políticos.
No meu livro “Era uma vez a Revolução” eu abordo precisamente este tipo de atitudes ao reflectir sobre as origens e as consequências de um sentimento muito comum a todas as esquerdas, o que possuem uma espécie de “superioridade moral” sobre todos os demais: “Ainda hoje, quando olho para a forma muitas vezes arrogante como a esquerda jacobina olha para todos os demais, quando sinto como no debate público todos os que não se filiam, de um forma ou outra, na tradição estatista e dirigista da esquerda, sofrem de uma espécie de capitis deminutio por, supostamente, não se preocuparem também com o bem da sociedade, recordo a lógica mistificadora da “superioridade moral”. É, no fundo, a mesma lógica que sustenta que o sector privado visa apenas o lucro egoísta – e que os burgueses só querem engordar à custa dos trabalhadores –, enquanto o Estado visaria apenas o bem comum.”
Há ainda outro elemento muito importante que une a generalidade das reacções de indignação exaltada: a oposição radical a qualquer forma de caridade, algo que definem logo como caridadezinha. Não é uma posição nova nas esquerdas radicais, apesar de poucos se preocuparem em justificar o porquê da sua oposição a uma prática que resulta de um dos sentimentos humanos mais nobres, o da compaixão. Os mais iletrados limitam-se a dizer que tudo isso é “salazarento”, essa espécie de ónus que evita qualquer necessidade de justificação e serve sempre para tentar atirar o opróbrio para cima dos adversários. Os menos iletrados procurarão dizer defender que o Estado tem obrigações de solidariedade porque “as pessoas têm direitos”, sugerindo que a caridade se destina a perpetuar precisamente a falta desses direitos.
Haveria muito a dizer sobre estes raciocínios, mas a minha experiência jacobina permite-me ser apenas cínico: o que realmente pensam muitas dessas almas, mas nunca confessam, é que a caridade – ou o Banco Alimentar contra a Fome – contribuiu para aliviar o sofrimento dos pobres e isso torna menos provável a sua revolta, ou seja, torna mais longínqua a revolução libertadora com que sonham – e garanto-vos que sei do que falo, porque já pensei assim. Atenção que não estou a dizer que eles desejam o sofrimento dos pobres – o que estou a dizer é que a sua crença num amanhã radioso os leva a opor a tudo o que posso melhorar um dia a dia que vêm sempre como miserável. O militante da esquerda jacobina não dá uma esmola a um pobre – organiza a revolta desse pobre, tentando fazer dele um soldado da revolução. Numa versão mais social-democrata, leva-o apenas a reclamar um subsídio à mesa do Orçamento.
Não surpreende por isso que o trabalho de Isabel Jonet perturbe estas mentes. E surpreende ainda menos que as suas palavras, muito tera-a-terra, muito sensatas, muito capazes de tocarem as pessoas comuns, os irritem de forma superlativa. A bem ver, só me surpreende a pouca irritação que há com estas indignações – a nossa paciência é, de facto, muito grande. Demasiado grande?

Comentários

Anónimo disse…
A Isabel Jonet interessa, há mais de 20 anos mitigar a fome a quem não tem meios de sobrevivência, aos pigmeus de esquerda, dava geito que algus morressem à fome para incentivar a revolta... ainda que, nessa revolta, morressem muitos mais.

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