Moral e política

António Barreto | DN 20160320

Sempre fizeram mau casamento. Quando uma, a moral, é invocada a propósito da outra, a política, é quase sempre mau sinal. Pode ser impotência da política, isto é, da justiça e da lei para pôr cobro a certas atitudes e determinados comportamentos. Também acontece ser sinal de despotismo ou de ambição totalitária: por exemplo, políticos que desejam impor um código moral de que carecem para os seus actos de governo. Poderá ainda ser, à falta de argumentos racionais, uma tentativa de impor regras por outras vias que não sejam as dos métodos políticos tradicionais, com o que se transforma a religião e a moral em instrumentos de poder. E já não me surpreende que, tantas vezes, os privilegiados e favorecidos reclamem "ética" e comportamentos "morais" para que os seus dependentes obedeçam e aceitem o estado presente e "natural". Não me canso, finalmente, de ouvir, todos os dias, gente de várias gerações queixar-se da "falta de ética" e da inexistência de "valores morais" por parte daqueles que, simplesmente, têm valores diferentes e crenças diversas. Nas ruas, nas empresas, nas escolas, nos estádios de futebol, nos recintos de espectáculos, nas repartições, nos comércios e até nas igrejas, muitos que querem conservar e manter a ordem estabelecida reclamam contra a ausência de moral dos outros.
Por vezes, em certas circunstâncias, em determinadas épocas e em vários países, assiste-se a fenómenos ainda mais complexos, tais como o da presunção de que a política de alguém implica uma moral, uma cultura, uma ciência e uma visão de classe totalmente opostas à do outro. E que a verdade de um é incompatível com a verdade do outro. Melhor ainda: à verdade de um opõe-se, por definição, a mentira do outro. A moral de um é combatida pelo interesse do outro. E a honestidade de um é contrariada pela corrupção do outro. Estas são as raízes do fanatismo, político ou religioso. A que não são alheios fenómenos tão diversos como o sectarismo nacionalista ou o facciosismo desportivo.
O que se passa no Brasil, com Lula da Silva à beira de ser nomeado ministro, a fim de evitar ser preso por corrupção, e um juiz federal a tentar impedir aquele gesto, merece toda a atenção. Não para resmungar, mais uma vez, contra a "falta de valores" e a "ausência de moral", mas sim para perceber o modo como as tribos políticas transformam em virtude não só as suas ideias, como também os seus interesses, os seus crimes e os seus roubos. No Brasil ou na Venezuela, em Portugal ou em Itália, políticos ou banqueiros, empresários ou sindicalistas, assumem a sua mentira e a sua corrupção como actos legítimos na defesa dos seus interesses e pontos de vista que são obviamente lícitos, contra os dos outros, que os combatem com meios evidentemente ilegítimos. Um governante que mente e rouba, um banqueiro que esconde e desfalca, um empresário que corrompe e disfarça, um gestor que favorece e dissimula ou um deputado que falsifica e engana, tem todo o interesse em demonstrar que os seus inimigos são, não a lei nem as instituições democráticas, mas os opositores, os outros partidos, as outras classes sociais, as outras nacionalidades. Por isso, os envolvidos nestes casos procuram, na imprensa, nas televisões e na rua, ganhar as batalhas que nunca venceriam na justiça. Por isso há bandidos que tentam vencer, com a política, o que nunca obteriam com a lei. Por isso, os grandes delinquentes consideram que a justiça e os magistrados estão "ao serviço do inimigo".
Na América Latina e na Europa, lá como cá, não estamos diante de mais uma escaramuça, mas sim de um grave conflito de cujo resultado depende a democracia. A vitória desta última só pode ser ganha com a justiça. Não chegam as maiorias políticas. Nem os poderes sociais e económicos. Nem a força da rua.

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