Os meus doentes são uns heróis

Edna Gonçalves
Observador 24/3/2016

Para atender adequadamente os doentes em fim de vida não basta a reforma do SNS, é também fundamental a reforma na Segurança Social que permita suportar algumas das despesas com os cuidados paliativos

Sou médica do Sistema Nacional de Saúde (SNS) há 27 anos e é neste âmbito que trabalho exclusivamente em Cuidados Paliativos (CP) pelo que, perante tudo o que se tem dito e escrito nos últimos tempos nos meios de comunicação social sobre eutanásia e “morte com dignidade” não posso deixar de afirmar bem alto: os meus doentes são uns heróis!
Os treze anos de trabalho exclusivo com pessoas portadoras de doença incurável, avançada e progressiva, primeiro no Serviço de CP do IPO-Porto e desde 2008 no Serviço de CP do Centro Hospitalar de São João, têm-me permitido confirmar que é muito mais fácil cuidar que ser cuidado. E num país onde são escassos os suportes sociais e económicos para os que querem cuidar os seus familiares ou amigos, não posso deixar de prestar a minha homenagem aos cuidadores informais destes doentes, pela coragem de os ajudarem a viver com dignidade o seu tempo de morrer. E digo viver porque, a trabalhar no SNS, comprovo diariamente que nos últimos meses, semanas ou mesmo dias de vida é possível viver intensamente e dar força aos outros.
Na verdade, é hoje relativamente fácil aliviar grande parte dos sintomas físicos associados às doenças graves e ameaçadoras da vida, nomeadamente a dor ou falta de ar. Mas controlados estes sintomas vêm ao de cima sentimentos de insegurança, abandono/isolamento, medo do futuro e mesmo perda do sentido da vida, agravados pela sensação que alguns doentes têm de ser um peso para a família. É nesta matéria que os profissionais de Cuidados Paliativos, com formação diferenciada na área da comunicação, espiritualidade, apoio à família e trabalho em equipa, para além do controlo de sintomas, desempenham um papel fulcral, reconhecido pelos que rejeitam e pelos que defendem a legalização da eutanásia.
Existem atualmente em Portugal várias equipas de CP, a maior parte delas no SNS mas, como tem sido dito e repetido nas últimas semanas, o que temos é claramente insuficiente para as necessidades do país. Na verdade, apesar de 62% das mortes em Portugal ocorrerem nos hospitais onde, segundo dados do Observatório Português de Cuidados Paliativos, 51% dos doentes internados beneficiariam de cuidados paliativos, a maioria dos hospitais do SNS não tem unidade de internamento de cuidados paliativos (UCP) nem consulta externa e as equipas intra-hospitalares de suporte em cuidados paliativos (EIHSCP), que existem já na maioria dos hospitais, estão subdimensionadas tendo cada equipa 1 a 2 médicos e um número similar de enfermeiros, mesmo nos hospitais com mais de 500 camas! A isto acresce o facto de termos apenas 22 equipas domiciliárias de CP quando deveríamos ter 51 a 74 (uma por 140.000 a 200.000 habitantes, segundo programa nacional de CP de 2010).
Mas apesar de todos se dizerem insatisfeitos com a oferta de CP em Portugal, os nossos governantes parecem ignorar que os CP são necessários e até já existem nos hospitais do SNS e nos cuidados de saúde primários e confundem-nos com cuidados continuados integrados (CCI)! Se se pretende desenvolver rapidamente uma rede efetiva de CP que chegue a todos os Portugueses, é urgente que estes cuidados sejam incluídos na reforma do SNS a nível hospitalar e dos cuidados de saúde primários e não apenas ao nível dos CCI. De facto, sabe-se hoje que para além de melhorarem a qualidade de vida dos doentes e suas famílias, os CP aplicados precocemente diminuem os tempos de internamento hospitalar, o recurso aos serviços de urgência, aos cuidados intensivos e ao encarniçamento terapêutico e, consequentemente, diminuem os custos em saúde. E uma vez que os doentes com necessidades paliativas complexas já estão internados nos hospitais, a criação de UCP nestas instituições não implica o aumento do número de camas hospitalares e pode até ajudar a diminui-las, o que pode ser ainda potenciado pelo aumento de equipas domiciliárias de CP. Assim, com equipas de CP adequadamente dimensionadas em todos os níveis de cuidados do SNS (hospitalares, comunitários e continuados) bastaria um simples telefonema, carta ou email de transferência para que os doentes transitassem entre níveis de cuidados, de acordo com as suas necessidades e rapidamente teríamos a funcionar a tão desejada “Rede Nacional de Cuidados Paliativos”.
Por outro lado, se queremos formar rapidamente os profissionais de saúde é urgente que as oito faculdades de medicina do país passem a incluir os CP nos seus planos curriculares e que os hospitais que lhes estão associados tenham Serviços de CP com unidade de internamento, EIHSCP, consulta externa e equipa domiciliária podendo/devendo esta estar adstrita aos cuidados de saúde primários.
Mas para atender adequadamente os doentes em fim de vida não basta uma reforma do SNS, já que cuidar um familiar ou amigo com doença incurável, avançada e progressiva provoca desgaste físico, emocional e económico o que se não for devidamente acautelado pode leva a que alguns doentes se sintam um fardo para a família e possam por isso pedir eutanásia. Assim, paralelamente à reforma do SNS é fundamental que ocorra também uma reforma na Segurança Social que permita suportar algumas das despesas próprias do cuidar e melhore o acesso às ajudas técnicas de que estes doentes tantas vezes necessitam (cama articulada, cadeira de rodas ou de banho, …) e diga-se a este respeito que, atualmente, os profissionais de CP enquanto tal não podem pedir estas ajudas! Para além disto é ainda importante que os familiares destes doentes cuidem os seus entes queridos sem correr o risco de perder o emprego. Com tantos jovens desempregados, nomeadamente jovens com formação na área da saúde, porque não formar nos centros de emprego cuidadores que ajudem a cuidar estes doentes em casa, aliviando a carga da família?
Sabendo-se que os cuidados paliativos podem diminuir os pedidos de eutanásia ou suicídio medicamente assistido, que existe em Portugal muita desinformação sobre este tema bem como sobre obstinação ou encarniçamento terapêutico, consentimento informado, direito a recusar tratamentos ou diretivas antecipadas de vontade e que tanto há a fazer para que todos ou pelo menos a maioria dos Portugueses tenham acesso a CP de qualidade, que sinal damos às gerações futuras ao legalizar agora a eutanásia e o suicídio medicamente assistido? Efetivamente é mais rápido, dá menos trabalho e é certamente mais barato matar os que sofrem. Mas é isto que queremos para Portugal? Eu não.
Médica

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