Entre o lava pés e a hipocrisia
Esquerda.net 27 de Março, 2016 José Manuel Pureza
Nesta quinta feira de Páscoa, Francisco, o Papa, lavou os pés a quatro nigerianos, três eritreias, um sírio, um paquistanês, um maliano e um indiano, todos requerentes de proteção internacional no espaço europeu. O gesto é tudo.
O Papa lançou o desafio, desta forma simples, a uma atitude no avesso da que marca a atual política europeia para com os refugiados.
De forma diferente da de Francisco, mas coincidente com ele no essencial, várias organizações humanitárias – do Alto Comissariado das Nações Unidas para os Refugiados ao International Rescue Committee, passando pelo Conselho Norueguês para os Refugiados ou pelos Médicos sem Fronteiras – decidiram nos últimos dias boicotar essa política europeia, recusando-se a enviar requerentes de proteção internacional para os centros de detenção em que se tornaram os hotspots, de que serão depois recambiados para os países de origem. Estes centros são o elemento fundamental do acordo celebrado entre a União Europeia e a Turquia. Os “europeístas convictos”, que se reclamam sempre do pedigree humanista máximo, que tanto gostam de reivindicar para a Europa a condição de exemplo para o mundo inteiro em matéria de direitos humanos, estão a dar esta resposta de máxima desumanidade e de violação grosseira dos princípios básicos do direito humanitário a uma procura de proteção menor, para todo o espaço europeu, do que a que se verifica para a Jordânia ou para o Líbano sozinhos.
O que o acordo entre a União Europeia e a Turquia faz não é ajudar quem ajuda, como escreveu um comentador distraído. É pagar a quem faz o trabalho sujo. A Europa paga seis mil milhões de euros à Turquia para que esse país, tão confiável no respeito pelos direitos humanos como uma claque de futebol na recusa do fanatismo, trave a fuga de afegãos, eritreus ou sírios e seja entreposto de devolução dos milhares que fogem à guerra ou à miséria mas não cabem nas leituras restritivas da Convenção do Estatuto de Refugiado, de 1951. Tão lesta a tamponar os caminhos da fuga e tão afável com os muros externos e internos e com as políticas proto-nazis de confisco de bens aos requerentes de asilo, esta Europa bem merece que Francisco, o Papa, a envergonhe com um simples lavar de pés a gente em fuga. Um gesto de serviço humilde faz mais pelos direitos humanos do que décadas de discursos sonantes. É a diferença entre autenticidade e hipocrisia.
Artigo publicado no "Diário As Beiras", a 26 de março de 2016
Comentários