A morte como acto de consumo

JOSÉ MIGUEL PINTO DOS SANTOS Público 21/03/2016

Ninguém sano de cabeça quer antecipar nem morte, nem impostos...

Impostos e morte são dois factos desagradáveis da vida. Quem é que, dentro dos limites da lei, podendo pagar menos impostos paga mais? Os distraídos e os palermas. Quem é que, dentro dos limites do natural, podendo viver mais prefere morrer antes? Os deprimidos e os doidos. É sano procurar evitar o que é penoso e constrangedor, respeitando natureza e lei positiva, e quer morte quer impostos são constrangedores e penosos.
Por isto mesmo, impostos e morte explicam muitos comportamentos aparentemente aberrantes e, às vezes, até induzem condutas realmente insanas. São impostos que levam automobilistas patriotas mas poupados a fazer quarenta quilómetros, “a desperdiçar combustível”, só para ir abastecer a Espanha. É o distante espectro da morte que faz cidadãos poupados mas sedentários a pagarem a um ginásio para poderem correr em cima de uma passadeira, “a queimar calorias”, como se fossem hamsters. Sendo pois muitas e variadas as anormalidades que se fazem para evitar, ou adiar, impostos e morte, podemos suspeitar quantos problemas pessoais não deixariam de existir, e quantos males sociais não se resolveriam, se, senão a morte, pelo menos os impostos, fossem completamente abolidos.
Uma das principais causas da crise económica que o Japão atravessa há duas décadas está na insuficiência do consumo interno. Dito de outro modo, o consumo das famílias é muito inferior ao seu rendimento disponível; e só uma fracção da poupança que daí se gera é utilizada pelas empresas em investimentos produtivos. Este é um problema japonês desde há muito. O facto de as famílias procurarem poupar mais do que as empresas pretendem investir, numa situação em que o Orçamento do Estado e a balança com o exterior estão em equilíbrio, resulta sempre em recessão e desemprego. Para evitar estes males, sem eliminar o excesso de poupança, há duas soluções possíveis: ou se passa a exportar mais do que se importa, ou o sector público passa a gastar mais do que cobra em impostos. O Japão adoptou com sucesso a primeira solução a partir do início dos anos sessenta do século passado. Quando, nos anos oitenta, esta primeira válvula de escape deixou de se poder expandir, devido a fricções com os principais mercados de exportação, o governo japonês passou a usar também a segunda solução. Os défices públicos tornaram-se cada vez maiores e foram-se acumulando numa dívida pública tão grande (cerca de 230 % do PIB) que parece não poder permitir mais expansão no uso desta segunda válvula de escape.
Para além da política comercial e da política fiscal, a política monetária também foi usada. Com a expansão da massa monetária e da descida das taxas de juro para zero, e para baixo de zero por cento, pretendia-se conseguir dois efeitos. O primeiro era tornar tão fácil e tão barato quanto possível o investimento privado (quando as taxas de juro são negativas, quem pede emprestado é pago para levar o dinheiro!). O segundo era desincentivar a poupança das famílias. Deste modo pretendia-se diminuir o excesso de poupança em relação ao investimento. Mas tal como se pode levar o burro ao bebedouro mas não se pode obrigá-lo a beber, pode-se incentivar o investimento e o consumo, mas não é possível obrigar as empresas a investir nem as famílias a consumir. Poucos duvidam que estas políticas já deram o que tinham a dar no Japão e não resolveram o problema do excesso de poupança e da consequente estagnação económica.
Nesta difícil conjuntura, e dado o esgotamento de soluções macroeconómicas, não só das tradicionais, mas também das não convencionais, alguém deixou, no Verão passado, numa das famosas caixas de sugestões japonesas, neste caso numa shingikai, uma ideia que, diz-se, está a ser seriamente considerada pela burocracia governamental. Envolve uma curiosa aplicação do imposto sobre o consumo, de um modo pouco ortodoxo. O imposto sobre o consumo japonês, o shohizei, é, para todos os aspectos relevantes, um imposto semelhante ao nosso IVA. Considerando que, “ao lado de cidadãos quais, entre a idade da reforma aos sessenta e a morte esperada aos oitenta e cinco anos, contribuem para a recuperação do crescimento económico da nação, consumindo com afinco e denodadamente as suas poupanças, pensões e reformas, e pagando também a parte que lhes cabe do IVA, existem outros quais, remissos em consumir não gastam as suas poupanças e morrem sem terem pago o quinhão que lhes cabe de IVA,” propõe que “as poupanças de todos os que morrem, ricos e pobres, sejam taxadas à taxa do IVA,” actualmente oito por cento.
Repare-se que este não é um imposto sobre heranças, pago pelos herdeiros, com taxa progressiva sobre o montante que herdam (e que no Japão atinge apenas cerca de 4% das heranças). É a aplicação do IVA não só ao consumo de facto realizado, mas também a todo o consumo potencial, pois poupanças são rendimento ainda por consumir. Enquanto o IVA, nos moldes actuais, apenas tributa o consumo à medida que este é feito e deixa escapar o consumo não realizado, a proposta agora sob consideração pretende que se considere que, na morte, o consumo potencial não realizado seja dado como consumado e, consequentemente, seja tributado e cobrado ao falecido. A morte passaria a ser, para efeitos tributários, como o momento em que todo o consumo em mora é realizado. A proposta nota ainda que, nos moldes em que está a ser aplicado, o IVA incentiva o comportamento anti-social do não consumo ao conceder uma isenção fiscal de facto ao rendimento não consumido.
Prevêem-se várias consequências positivas com o alargamento da aplicação do IVA ao consumo em morte. Uma delas seria a antecipação do consumo ainda em vida por muitas pessoas, com o consequente estímulo económico. Isto permitiria diminuir o consumo público, o que, conjugado com o aumento da cobrança do IVA, faria diminuir o défice. Permitiria ainda o descongestionamento dos hospitais públicos. Como? Ninguém sano de cabeça quer antecipar nem morte, nem impostos...

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