O JULGAMENTO DE JESUS
JOSÉ TOLENTINO MENDONÇA
Expresso, 20160325
Quem se deslocou à Fundação Gulbenkian para escutar a lição de Joseph H. H. Weiler sobre o julgamento de Jesus assistiu a um evento invulgar, pelo menos entre nós. Um iminente professor de Direito, e não um teólogo, conseguiu reunir mais de um milhar de pessoas para escutá-lo dissertar, com detalhe, sobre o episódio jurídico que determinou a morte de Jesus. A justificação avançada por Weiler, que anteriormente realizara esta conferência em Nova Iorque e em Florença, é que o julgamento de Jesus interessa a todos, já que, como nenhum outro, interroga a consciência humana e fez (e faz) sentir as suas consequências no curso da civilização ocidental. Joseph Weiler é um intelectual judeu e sabe bem como as interpretações do julgamento de Jesus se tornaram um ponto nevrálgico das relações entre cristãos e judeus na história. Recorde-se, por exemplo, que só por intervenção do Papa João XXIII (isto é, só na década de 60 do século XX) se retirou das orações de Sexta-Feira Santa o termo “pérfidos” atribuído aos judeus, sobre os quais pesou, de forma mais explícita ou velada, a terrível acusação do deicídio. E que o Concílio Vaticano II teve de contrariar uma perceção de séculos para afirmar solenemente que não se pode imputar indistintamente a todos os judeus que viviam na época de Jesus, nem aos judeus do nosso tempo, a responsabilidade pelo desfecho do seu julgamento (“Nostra Aetate”, 5). De facto, os efeitos daquilo que São Paulo escreveu na Carta aos Efésios (2:14), “com a sua morte Cristo destruiu o muro de inimizade”, estão, na sua radicalidade, ainda em aprofundamento.
Quanto ao julgamento de Jesus, não é tarefa simples compreender exatamente o que se passou. Há talvez um único ponto firme em todas as pesquisas históricas: a certeza de que Jesus morreu numa cruz. Sobre este ponto temos o acordo não só das fontes cristãs (cartas de Paulo, evangelhos canónicos e apócrifos e outros escritos protocristãos) mas também do mundo judaico e das fontes greco-romanas. Tácito (55-120 d.C.), o historiador antigo, fala do supplicium de Jesus, isto é, da junção da pena capital, a cruz, com a tortura. Do mesmo modo se pronuncia Luciano de Samosata (120-190 d.C.) quando desdenha os cristãos por adorarem “o sofista crucificado”. E nessa linha estão testemunhos de Marco Cornélio, Celso, Flávio Josefo, entre outros.
E, mesmo quando não se vê, a segui-lo por todo o caminho está o incalculável olhar da sua mãe. Antes daquele pôr do sol, Jesus estaria executado
Ora, aceitando que Jesus morreu numa cruz, há um conjunto de informações que podemos daí inferir. E à cabeça assomam estas: 1) a sua condenação foi assinada pela autoridade romana, pois só ela podia determinar a crucificação como pena capital; 2) e o motivo da eliminação de Jesus teve necessariamente, além das questões religiosas, uma dimensão política. Mas, no caso de Jesus, a situação complexifica-se, se considerarmos o envolvimento da autoridade judaica. Sobre este aspeto, os quatro evangelhos convergem, afastando-se apenas nos detalhes. Segundo Marcos, os soldados que prenderam Jesus foram enviados pelos sumo sacerdotes, os escribas e os anciãos, que é como quem diz pelo Sinédrio. Mateus nomeia apenas os sumo sacerdotes e os anciãos do povo. Lucas envolve diretamente os sumo sacerdotes, as autoridades do templo e os anciãos. Enquanto João, a par dos sumo sacerdotes e dos fariseus, refere uma coorte (batalhão de 600 soldados) e um chefe militar. Não parece, porém, muito verosímil que os sumo sacerdotes se deslocassem pessoalmente para prender Jesus: a voz de prisão terá sim partido do sumo sacerdote em exercício, já que o aparelho judicial romano concedera à autoridade judaica a capacidade de instrução de processos judiciais. E, por outro lado, se como relata São João, um contingente romano presidisse à prisão de Jesus, este teria sido imediatamente levado a Pilatos e não ao sumo sacerdote Caifás. Uma coisa é certa, contudo: Jesus foi preso e, curiosamente, nenhum dos seus discípulos seria arrolado com ele, o que significa que não houve resistência à prisão e que o mandato era bem dirigido à pessoa de Jesus. Junta-se um ulterior elemento: como colaborador das autoridades surge um dos seus discípulos, Judas Iscariotes, embora os seus motivos permaneçam em silêncio nos evangelhos.
O facto de Jesus ser preso à meia-noite poderá indicar que tinham pressa em resolver o assunto ou que temiam que, entre os peregrinos que visitavam Jerusalém naquela Páscoa, houvesse simpatizantes de Jesus a manifestar-se por ele. Precipitam-se assim os procedimentos. O evangelho de Marcos (15:1) conta que logo de manhã se reuniu o Sinédrio, que irá entregar Jesus manietado a Pilatos. Serviu talvez para uma investigação preliminar a apresentar no processo romano. Pilatos, por sua vez, poderia ter executado Jesus, sem qualquer formalidade, mas decide-se por um processo. Nesse ponto também há consenso entre as fontes. O direito romano regia-se por quatro princípios: 1) garantia de um julgamento público; 2) uma acusação feita sob reserva; 3) o direito à defesa; 4) uma sentença resultante de um consilium. Naquela manhã em que se encontrou com aquele profeta acusado, Pilatos estava ocupado a julgar outros casos, como o demonstra o facto de dois salteadores serem crucificados com Jesus e a amnistia que é concedida a um agitador de nome Barrabás. O desfecho é o que se conhece. Sucede-se, depois, a Via Crucis. O caminho entre o pretório e o local da execução atravessa a alta da cidade. A multidão aglomera-se para ver passar os condenados carregando o patibulum (a trave horizontal da cruz, dado que o mastro vertical aguardava já no local). Acompanha-os um pelotão de soldados, que não evitam as manifestações de escárnio para com Jesus nem as notas singulares mas intensíssimas de compaixão que espontaneamente ocorrem. Uma mulher vem limpar-lhe o rosto. Um homem escolhido ao acaso ajuda-o a levar o patibulum. As mulheres da cidade choram-no. E, mesmo quando não se vê, a segui-lo por todo o caminho está o incalculável olhar da sua mãe. Antes daquele pôr do sol, Jesus estaria executado.
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