PADRE VÍTOR FEYTOR PINTO

DN magazine, 2016.03.27

«A confissão é um encontro entre dois pecadores»

Vítor Feytor Pinto garante que aos 5 anos já sabia que queria ser padre. Correu o país a pregar as conclusões do Concílio Vaticano II, a maior reflexão sobre a Igreja em dois mil anos de história e correu o planeta a falar sobre saúde, sexualidade, luta contra a droga e o papel da instituição no mundo. Falou para padres, bispos, médicos, famílias. Conheceu sete papas, trabalhou com quatro cardeais patriarcas. Uma conversa de duas horas e meia, para ler no domingo de Páscoa, sobre o papel da mulher na igreja e na sociedade, o Papa Francisco, a eutanásia, os abusos sexuais do clero e o tempo que não chega para tudo.
Os móveis escuros estão cheios de livros, documentos, papéis vários. Nas paredes e prateleiras do gabinete pequeno há fotografias com papas, memórias de mais de sessenta anos de sacerdócio. Na secretária, jornais e mais papéis. Depois de coordenar a Pastoral da Saúde e a luta contra a droga em Portugal, depois de viver em Roma e correr mundo, Vítor Francisco Xavier Feytor Pinto é, há 19 anos, prior da igreja do Campo Grande. Aos 65 anos, teve finalmente uma paróquia, como desejava. Hoje, com 84, Monsenhor Feytor Pinto, o homem de voz forte e pensamento rápido, cita documentos papais de cor e trata por tu alguns dos mais altos responsáveis da igreja em Portugal.
Estamos a fazer esta entrevista no dia Internacional da Mulher [8 de março]. É um bom pretexto para dar os parabéns ou para lembrar o que falta conquistar?
Ambos. Por um lado recordar o que já se conquistou, por outro responsabilizar para o caminho que deve ser percorrido. Repare na quantidade de sociedades onde a mulher não tinha posição (até no tempo de Jesus Cristo) e que, ao longo dos séculos, a foram conquistando. Os direitos humanos consagraram a igualdade total entre as pessoas, mas há ainda todo um caminho que é necessário percorrer. Estamos no princípio, ainda, de restituir à mulher toda a dignidade que lhe é devida.
O que falta conquistar?
Falta uma coisa muito importante: que a mulher assuma uma dignidade tal que não possa ser magoada. Por razões económicas, de afirmação pessoal, de interesses – às vezes até escondidos –, por vezes a mulher desrespeita-se a si própria e a sociedade desrespeita-a. A publicidade, por exemplo, usa e abusa da imagem da mulher.
E coisas mais mundanas? Práticas. Como igualdade salarial, por exemplo.
Isso é fundamental. Estamos muito longe da igualdade total entre o homem e a mulher, no trabalho, na aprendizagem, na cultura, na investigação científica, nos vencimentos, no acesso a cargos políticos – muito mais difícil para a mulher do que para o homem.
Concorda com as quotas que garantam números mínimos em várias áreas? 
Não. Detesto essa história das quotas. Eu vou pelos méritos e há muitas mulheres com méritos que não lhes são reconhecidos.
E na Igreja? Qual o papel da mulher na Igreja?
A mulher tem um papel importantíssimo na Igreja desde os primeiros séculos. Maria, mãe de Jesus Cristo, foi fundamental no nascimento da Igreja. E, ao longo no primeiro século, as diaconisas foram as melhores colaboradoras dos apóstolos. Na minha comunidade paroquial, se não tivesse muitas senhoras a colaborar, não conseguiria chegar a tanto lado. Só com os homens que trabalham comigo eu não realizaria tudo o que consigo realizar.
Mas há aí uma desigualdade grande: a ordenação de mulheres.
É um problema que deve ser debatido. Mas estamos muito longe de o conseguir aprofundar. Há muita gente que o vê como um problema meramente sociológico mas, se fosse, há muito tempo que estaria resolvido. Trata-se de um problema teológico. Nem Maria, mãe de Jesus, foi ordenada sacerdote. É um problema de teologia, em que vale a pena continuar a refletir.
Até quando? Algum dia será resolvido?
Quem sabe? Nestas coisas, não sou capaz de antever o que é que a reflexão teológica pode conseguir.
É a favor da reflexão teológica em torno dessa e de outras questões? Sem dogmas?
Sou a favor da discussão de todos os problemas.
E da ordenação das mulheres? É a favor?
Não sou nem a favor nem contra. Como estou perante um problema teológico, peço que o aprofundamento da fé ao nível teológico nos diga claramente o caminho a percorrer. Se fosse um problema sociológico e quiséssemos resolver a falta de padres, era facílimo: ordenávamos mulheres. Ou homens casados – embora essa seja uma discussão de natureza pastoral. Mas a ordenação das mulheres é um problema teológico, dificílimo de explanar, porque toda a reflexão assenta na discrição bíblica e na tradição de vinte séculos. Como é que vamos explorar isto ao ponto de podermos dizer, sem mais, que não há problema? Vamos continuar a refletir. Neste problema, João Paulo II foi taxativo, ao considerar sem impossível a ordenação sacerdotal de mulheres.
Se o Papa Francisco dissesse que, a partir do dia X, as mulheres podiam ser ordenadas… Podia fazê-lo?
O Papa pode dizer tudo. Mas não me parece que esteja preocupado com isso. O mundo tem tantos problemas, tão graves, que o Papa tem que os assumir de uma maneira incondicional, sem receio. Se vamos para um fenómeno de diversão, de repente falamos de outras coisas.
Falou há pouco da ordenação de homens casados. E se o papa dissesse que deixava de haver celibato? Concorda? Algum dia isso vai acontecer? 
Para mim não se revolucionava nada com isso. Conversemos sobre o sacerdócio das mulheres, óptimo. É um problema teológico, vamos continuar a conversar. Conversemos sobre o celibato do clero, que é um problema pastoral, fácil de resolver. Basta o Papa dizer: «Não há celibato». E deixa de haver problema.
Isso permitiria uma abertura maior da Igreja.
Isso é que eu não sei. Repare: hoje temos uma exigência tal no sacerdócio, que o padre tem que estar extremamente comprometido na sua ação pastoral. Digo isto de coração: se estivesse casado, a minha mulher seria uma infeliz, porque eu nunca estava com ela.
Apesar de ser especialista em bioética e ter quilómetros de carateres escritos sobre a importância da família e a sexualidade, não acha que se fosse pai ou marido, falaria com outra autoridade?
Tenho a sensação que não. Passam por este gabinete todos os problemas, os mais diversos, para eu ajudar a resolver. Às vezes tento fazê-lo com a ajuda de psicólogos ou psiquiatras. Quem resolve o problema de alguém não é o confessor, nem um psicólogo, nem um psiquiatra, nem um médico – é o próprio. O nosso papel é dizer qual é o caminho e eu sei quais são os caminhos. Não só porque os estudei, mas porque, ao longo de sessenta anos de padre, acompanhei milhares de famílias. Fui durante vinte anos assistente nacional das equipas da Nossa Senhora [movimento de espiritualidade conjugal], tinha dezenas, centenas de famílias a passarem por mim, algumas com os seus problemas a questionarem-me sobre a relação marido-mulher, sobre a relação pais-filhos, a superação dos problemas que os filhos tinham…Trabalhei durante seis anos na área da toxicodependência no Projeto Vida. O que eu tinha que ajudar aqueles pais a ajudarem os filhos que tinham este problema… Eu não preciso de ser casado para dar resposta a estes problemas.
E quando não sabe que resposta dar, com quem se aconselha, para depois poder aconselhar?
Por vezes digo que o problema não é da minha competência. Pode ser um problema biológico grave, um problema clínico. Aconselho um médico e também temos uma equipa de médicos, de psicólogos, que ajudam.
E outros problemas. Diferentes. Os do papel da igreja na sociedade. Quais são os grandes desafios da Igreja atualmente? Aqueles que importa inverter, ultrapassar, enfrentar?
O grande problema que a Igreja tem hoje é o da relação com o Mundo. E não está a ser suficientemente debatido e trabalhado. Aliás, este Papa di-lo expressamente: «Quero uma Igreja em saída». Uma Igreja que vai ao encontro do Mundo. Esse é o cerne da evangelização. E o Concilio Vaticano II, há cinquenta anos, disse-o expressamente na Gaudium et Spes, o ultimo documento do concílio, o mais difícil de ver aprovado, que fala de três problemas fundamentais e como a Igreja se deve colocar perante eles: a dignidade humana, a importância do trabalho e toda a atividade humana, e a comunidade, as pessoas saberem viver entre si. Foi quando a Igreja condenou todos os totalitarismos, de direita e de esquerda. O documento diz ainda quais são os cinco pontos onde a igreja tem de intervir: na família; na cultura (os homens da cultura dizem que são agnósticos porque falta uma cultura marcada pelos valores do Evangelho); na dimensão económico-social da sociedade; na intervenção politica dos cristãos; e na construção da Paz. Na cultura, a intervenção é importantíssima, porque é aqui que está a educação. Gente sem cultura não é capaz de construir uma sociedade nova. O Concilio define ainda qual é o papel do leigo na Igreja. A maior parte das pessoas pensa que ser cristão é vir à missa. E fazer orações. E peregrinações aos santuários. Mas o papel do leigo não é vir à missa. É intervir na casa comum – tudo que é vida da comunidade, como diz o Papa. O objetivo é que Cristo entre na história humana e a transforme completamente.
Apesar da crise de vocações e do afastamento da população em relação à igreja, o Papa Francisco tem dado passos importantes. Fala de temas fraturantes, assume posições polémicas, aproxima-se das pessoas. E caiu nas boas graças, até dos não leigos. Será este o Papa que levará a Igreja para a modernidade? Ou a Igreja precisava de mais dois ou três como este?
Cada Papa tem a sua história e a sua capacidade de intervenção. E cada um traz alguma coisa de novo. João XXIII [1958-1963] falava em levar a Igreja ao encontro dos grandes problemas do Mundo. O Papa Paulo VI [1963-1978] instituiu o dia Mundial da Paz e trabalhou a importância de a Igreja apostar no desenvolvimento integral. João Paulo II [1978-2005] pegava nas crianças, coisa que nenhum Papa fazia, falava com toda a gente, ia aos hospitais ver os doentes e falava sempre primeiro dos problemas humanos das regiões onde estava, em cada uma das 69 visitas apostólicas que fez. Estes Papas tiveram esta preocupação de aproximação da Igreja ao Mundo. Com Francisco, não será apenas a modernidade que o Papa anuncia, será a verdadeira imagem da Igreja, a de uma Igreja de proximidade. A Igreja fundada por Jesus Cristo.
Este Papa personifica isso? 
A Igreja de proximidade, sim.
Francisco afastou um cardeal americano por supostamente ser contra os direitos dos homossexuais, afastou um bispo na Alemanha porque levava uma vida faustosa, prefere carros pequenos, escolheu outros aposentos, mais discretos e menos luxuosos para viver, na Casa de Santa Marta, diz que não existem mães solteiras, porque ser mãe não é um estado civil… Concorda?
Completamente, claro.
Se não concordasse, dizia?
Não passa pela minha cabeça não concordar. Fico muito contente com o facto de o Papa trazer uma nova imagem ao Papado.
O que é que ainda falta fazer a este Papa?
Este Papa tem três objetivos: a aproximação aos pobres, a ecologia e a renovação da Igreja, através da própria estrutura.
Conhece-o? Conheceu o cardeal Bergoglio?
Há vinte anos, em representação da Santa Sé, fui à Argentina para uma reflexão com os bispos da América Latina responsáveis pelas áreas da saúde. Fomos falar sobre SIDA. Nessa altura, entre os assistentes estava o Monsenhor Bergoglio.
Foi a única vez que esteve com ele?
Depois disso estivemos juntos na Conferência Internacional do Vaticano sobre Saúde, em novembro de 2013, já depois da ele ser eleito Papa. Fui moderador de um debate sobre problemas de saúde onde estavam umas vinte pessoas, entre ministros, embaixadores e eu e outro monsenhor. O papa presidiu a sessão e no final deveríamos ir cumprimentá-lo. Mas ele recebeu oitenta doentes em cadeiras de rodas e demorou-se longamente a conversar com cada um. Acabámos por não ir cumprimenta-lo, mas recebemos do Papa o melhor gesto que ele nos podia dar: a atenção para com os que mais sofrem.
Outra grande surpresa em relação ao Papa Francisco foi a tomada da posição perante casos de abusos sexuais por membros da Igreja. 
Sublime. Já o Papa João Paulo II tinha avançado o problema e Ratzsinger continuou. Este vai ao fundo.
Vai ao fundo a ponto de ponderar a possibilidade de entregar padres à justiça. É um passo inédito.
E distingue bem o tribunal eclesiástico e o tribunal civil. Funcionam com grande autonomia.
Numa entrevista que deu ao jornal 24 Horas em 2010, o padre Vítor dizia que os responsáveis devem ser chamados à justiça, mas opondo-se a «acusar os bispos e responsabilizar a Igreja». Defendia que não cabe aos bispos denunciar um padre às autoridades. «Ao bispo não compete denunciar aqueles que prevaricam. Compete-lhe chamá-los, admoestá-los, aconselhá-los e mudr de atitude.»
Quem é um bispo? Não é um superior. É um pai. E um pai não entrega à primeira um filho. Simplesmente, chama à primeira observação. Mas a partir da segunda observação, já não está numa atitude de pai e ao fazer qualquer recolocação tem que ter um cuidado enorme. E é tudo isto que este Papa quer neutralizar. Quem cometa um ato destes, deve ser castigado.
Mas ainda que tenha sido acusado uma vez, não é com a recolocação de um padre, retirá-lo de um local onde poderá ter cometido esse crime – porque é um crime – e colocá-lo noutra paróquia, que se resolve um assunto destes.
Tudo isso é tremendamente delicado. Tem que ser avaliado com muito, muito cuidado. O Papa deu uma orientação segura e muito rigorosa sobre tudo isso.
E qual é essa orientação?
Não sei de cor todo o articulado da norma. Mas sei que é uma norma rigorosíssima.
Sabendo que um padre poderá ter cometido abusos sexuais sobre um menor…
Deve ser castigado. Ponto final, parágrafo.
Viu o filme O Caso Spotligtht?
Não.
Gostaria de ver?
Gostaria muito de ver, sim, mas não tive oportunidade.
Leu as críticas?
Sim, sim. São muito positivas.
Para lá da questão de merecer, ou não, o Óscar de Melhor Filme, trouxe para a ordem do dia a questão dos abusos sexuais por membros da Igreja. Isso é bom? 
Chamar atenção para uma coisa negativa, errada, criminosa, é sempre bom. Porque pode ser terapêutico, por um lado. E é preventivo, sempre. E estamos com um problema que talvez não esteja a ser suficientemente analisado: as doenças neurológicas. Quase todos os casos de pedofilia sistemática de certeza que pressagiam uma doença, uma enfermidade da área da psiquiatria. São doentes mentais profundos. Se não fossem, não tinham este comportamento.
Mas que devem ser chamadas à justiça.
Completamente. Depois a justiça deve avaliar tudo isso. Há também uma sensibilidade social muito mais vasta, porque a nossa ternura pelas crianças é grande e ninguém pode abusar de uma criança. Mas sabe que, infelizmente, há cinquenta, cem anos, era uma coisa normal. Agora veio para a ribalta. Isto acontecia de uma maneira dramática, por aí fora.
Alguma vez tomou conhecimento de um caso de abusos sexuais na Igreja portuguesa?
Abusos, não. Talvez pelo tipo de trabalho que eu desenvolvo, nunca me chegou isso.
Nunca ninguém lhe referiu nada, nunca lhe soaram as campainhas para alguma coisa suspeita?
Digo-lhe mais uma coisa: no livro do Virgílio Ferreira sobre o seminário do Fundão [Manhã Submersa], ele não trabalha expressamente esse tema, mas deixa-o no ar, subliminarmente, a certa altura. Mas eu, que vivi cinco anos no seminário do Fundão, nunca dei conta que qualquer sacerdote tivesse abusado…
Nunca soube de nada, nunca lhe falaram de nada, em sessenta anos de sacerdócio?
Nunca ninguém me veio dizer: «está este caso assim, está este caso acolá». Não. Com toda a franqueza.
Não viu O Caso Spotlight. Mas vai ao cinema? Costuma ir?
De vez em quando.
Com que regularidade?
Agora não vou tanto como ia, antes de ter a paróquia [Campo Grande]. A paróquia apanha-nos de tal maneira, que até o gosto pelo cinema não se pode executar como gostaria. Mas vou duas ou três vezes por ano.
E séries de televisão, segue alguma?
Neste momento não sigo nenhuma.
O que é que vê na televisão?
Vejo muitos noticiários, comentadores, debates. Gosto de estar informado. Para uma pessoa da minha idade e com a minha responsabilidade, é mais importante do que séries interessantes, que seriam mais de diversão.
Além de encíclicas e documentos emanados pelo Vaticano e que cita com facilidade, o que lê?
Leio imensos livros.
Qual foi o último que leu?
O Nome da Rosa, do Umberto Eco. Reli-o depois da sua morte, recentemente.
E autores portugueses contemporâneos?
Já li bastante, atualmente estou a ler muito pouco. Aquele de quem gostei mais e me foi mais difícil, foi o José Saramago.
Leu O Evangelho Segundo Jesus Cristo?
Claro. Esse era fundamental. Foi com esse que acordei para ele. Mas depois li O Memorial do Convento e outros. São livros que temos o dever de ler.
E novos autores, Gonçalo M. Tavares, Valter Hugo Mãe…?
Actualmente não tenho lido quase nada. Eu que fui um devorador de romances, confesso que estou a ler muito pouco.
Falemos de outro tema na ordem do dia: a eutanásia. Estava ao lado da bastonária da Ordem dos Enfermeiros quando ela fez aquelas declarações aos microfones da Rádio Renascença. Foi assistente da Associação de Capelães Hospitalares e Coordenador Nacional da Pastoral da Saúde. Conhece bem os corredores dos hospitais. Ficou surpreendido com as palavras de Ana Rita Cavaco?
Com o que ela disse, não. Fiquei surpreendido com a interpretação que deram ao que ela disse.
Ela depois tentou explicar-se, mas a ideia da eutanásia nos hospitais públicos ficou no ar.
O que entendi é que haveria nos corredores dos hospitais uma reflexão séria sobre estes problemas. Mas não a vi dizer que em tal e tal situações se praticou eutanásia. E compreendo-a quando ela diz que é um tema que está em debate. Eu ainda agora passei seis meses a ir diariamente a uma unidade de cuidados intermédios onde uma irmã minha esteve internada e vi os cuidados primorosos dados aos doentes.
Hospital particular ou público?
Num hospital público. Só tenho elogios para esse hospital – esse e todos os que conheço. É preciso distinguir: os médicos acompanham os casos e, a certa altura, sentem que, ao avançar com mais intervenção, entram nos cuidados fúteis, inúteis, inadaptados, extraordinários. Quando os cuidados que estão a ser utilizados já têm estas características, suspendem a medicação. Mas isso não é fazer eutanásia, é não fazer distanásia. Não vão continuar a magoar o doente, quando a medicina que estão a utilizar já não tem efeito.
Mas uma das questões que se coloca é outra: a vontade, voluntária, de um doente que, em determinada situação, pode querer partir em paz.
Eu já acompanhei muitos casos em que me pediram isso e consegui juntar a equipa para assistir psicologicamente e espiritualmente essa pessoa, para tentar que ela desista da ideia. E já me disseram depois: «Eu não sabia o que estava a pedir».
Em que situações acompanhou doentes com essas características?
Em unidades de cuidados paliativos. Eu fui membro da primeira equipa que constituiu uma unidade de cuidados paliativos em Portugal. Há 25 anos, no hospital do Fundão – com o professor José Conde, o Dr. António Lourenço Marques e a enfermeira Maria de Lurdes. Quase todos os médicos especialistas de intensivíssimo, em unidades de cuidados intensivos e intermédios, fazem aquilo que eu chamo de cuidados de compaixão. Não é apenas paliação exclusiva.
Sim, não se trata apenas de controle da dor e do sofrimento. Há todo um acompanhamento pluridisciplinar e nos últimos anos as coisas melhoraram. Mas estamos longe do que é necessário: uma boa rede de cuidados paliativos. E muita gente a precisar de acompanhamento de qualidade. 
Continua a haver muitos casos, muito difíceis de julgar. E esses têm que ser apoiados.
E quando o julgamento depender da vontade do próprio doente? Da sua única e exclusiva vontade.
Qual é a razão por que o doente pede isso?
Para evitar um sofrimento atroz que possa durar uma série de tempo.
E isso não acontece com muita gente que não está doente?
Eu falo de ter a morte ao fundo do túnel. A morte anunciada e inevitável. 
A dor é uma coisa, o sofrimento é outra. A dor, conseguimos paliá-la completamente. O sofrimento, nem sempre. Mas quando podemos prestar os cuidados de compaixão e espirituais, conseguimos ajudar as pessoas a manter o equilíbrio. Não gosto de forma nenhuma de aceitar, que se considere que é bom uso da liberdade optar pela morte. No momento em que eu optei pela morte eu já não opto por mais nada, estou a destruir a minha liberdade e a liberdade para mim é o valor mais importante da vida humana. Eu não posso fazer nada que destrua a minha capacidade de optar. Portanto, eu bato-me pela vida. Eu estava na Suíça, num congresso da Organização Mundial de Saúde, quando abriu lá a primeira casa de apoio à eutanásia. Nos corredores falávamos disso e não vi praticamente nenhum médico aceitar que a Suíça se abrisse a essa solução. A liberdade tem uma dimensão – a dimensão social.
Mas a liberdade não começa, antes de mais, na possibilidade de a pessoa escolher?
E tem liberdade de magoar toda a família? E a dimensão social da vida, a dimensão social das minhas decisões? Isto é um conceito de liberdade? A liberdade não é escolher entre o bem e o mal, entre a vida e a morte. A liberdade é, entre duas coisas boas, escolher a melhor, sobretudo se estamos perante terceiros, que têm direito ao valor que está a ser discutido. E quando está a ser discutido o valor da vida, os filhos, os netos, eles têm direitos também, não podem ser magoados.
É possível que o assunto seja discutido no parlamento durante esta legislatura. Resta saber se vai a referendo ou se passa pelo crivo do Presidente da República. Conhece bem Marcelo Rebelo de Sousa? 
Presidi ao casamento do filho, batizei os netos, dei-lhes a primeira comunhão. Conheço-o bem e sou grande apreciador de Marcelo. É uma ótima pessoa.
Temos esta conversa na véspera da tomada de posse. Está satisfeito porque vamos ter um presidente católico? 
Estou contente porque temos um presidente que é um homem reto. O que é importante é a sua dignidade, a maneira como encara os problemas, a inteligência que lhe permite dialogar com as pessoas num nível de proximidade. Respeito profundamente cada pessoa, portanto não ponho como condição que seja melhor por ser católico. Agora, se é católico tem responsabilidades maiores.
Já lhe disse isso?
Só porque ainda não o encontrei. Tenho a certeza que ele é um cristão com um sentido muito grande da sua fé.
Em julho de 2005, numa entrevista ao jornal Público, a propósito dos cinquenta anos da sua ordenação, admitiu o uso de preservativo quando estivesse em causa «não matar». Na altura houve até quem fizesse queixa de si junto da Santa Sé. Continua a pensar da mesma forma?
Essa ideia de que a Igreja é contra o preservativo não tem sentido nenhum. O uso de preservativo pode ter duas razões: prevenção de doenças – e neste caso é obrigatório o uso de preservativo, não podemos andar a contagiar-nos uns aos outros – ou planeamento familiar – que a Igreja não aceita, a menos que haja razões que o justifiquem.
Não estará a Igreja a envolver-se na intimidade de um casal? É autor de um livro sobre este tema [Sexualidade Humana, Exigências Éticas e Comportamentos Saudáveis], mas não é isso uma coisa muito pessoal na vida a dois? 
Tenho muita pena que a Igreja não tenha falado o suficiente de sexualidade. O assunto devia ser metido na catequese desde os 6 anos. Não devíamos ter medo de abordar a sexualidade humana. É um valor máximo que Deus deu ao Homem – o poder de transmitir vida. Deus não é responsável pela fecundidade humana, mas responsabiliza o par humano para continuar a criação, para desenvolver a vida e para, no desenvolvimento desta, proporcionar alegria e prazer da própria realização do amor. E a vida afetiva sexual não tem como objetivo apenas a fecundidade. Tem também como realização a comunhão dos dois.
Logo, não precisa de implicar mais filhos, se for essa a vontade do casal. 
Há 18 métodos de planeamento familiar, não há um nem dois.
Mas há uns mais eficazes que outros.
Tem que haver uma informação suficiente sobre todos os métodos e depois deixe-se ao casal definir qual é a atitude que deve ter. Às vezes a recomendação pode ser médica.
Um irmão. Duas irmãs. Mas foi o único a seguir uma vida religiosa. Entrou para o seminário do Fundão aos 10 anos porque sentia essa vocação desde os 5. Influenciado pelo tio padre Zé e pelo seu pai, que pertencia a conferência de São Vicente de Paulo. Como é que se sabe tão novo o que se quer?
Eu dizia e repetia, mas a minha mãe dizia que primeiro deveria terminar os estudos e depois pensávamos nisso. Na admissão ao liceu, em vez de ir para o colégio que os meus pais tinham, ingressei no seminário.
Aos 13 anos teve uma nota negativa a latim e teve dúvidas sobre o seu caminho.
Tive fortes dúvidas, mas o vice-reitor ajudou-me. Depois disso nunca mais tive notas abaixo do máximo. E tive as hesitações normais da adolescência.
De que disciplina gostou menos no seminário?
Detestava o latim. E estranhamente adorei direito canónico.
Estranhamente, porquê?
Porque normalmente as pessoas não gostam, acham chato, é só números.
Nas dúvidas que tinha, pensava também em constituir família?
Era uma hipótese. Mas os meus pais tinham imposto uma condição: não andar vestido de padre como andavam na altura os seminaristas. Quando vinha de férias do seminário, ia para festas onde os meus irmãos iam e passávamos o mês de agosto juntos. Rapazes e raparigas. Convivi muito.
Como estava no seminário, não terá tido grandes oportunidades de namorar e ter dúvidas sobre isso, certo? Nunca teve uma rapariga que lhe tivesse suscitado curiosidade…?
Nunca cheguei a namorar. Tinha amigos e amigas e primos e primas e eu tendia para conversas – sobretudo com aquelas que tinham mais sentido espiritual e religioso.
Era uma família rica?
Uma família remediada.
Mas os seus pais eram donos de um colégio em Castelo Branco.
Sim, mas quando os meus irmãos estavam todos na universidade, o meu pai teve de vender o colégio e foi trabalhar para a administração do Hospital de Coimbra. Houve até uma altura em que passamos algumas dificuldades, como todas as famílias.
Uma das suas irmãs faleceu recentemente. Costuma estar com os outros dois? 
Sim. Ainda no domingo estivemos a almoçar, no meu aniversário.
Continua a passar um mês de férias com a família na Figueira da Foz?
Agora passo 15 dias. Estivemos dois anos sem ir porque quem governava a casa era a minha irmã que faleceu e ela já estava muito doente nessa altura. Mas já estamos a combinar em voltar lá.
Mas costuma ir para um hotel nas férias de verão…
Desde há dez anos. Para poder descansar. Em casa são muitas crianças aos berros e aos saltos (risos).
Vai à praia com eles?
Sim, claro.
Gosta de nadar?
Agora já não nado, mas costumava adorar. Era um atleta.
Praticou desporto no seminário. Era guarda-redes. Chegou a ser requisitado para a União Desportiva da Guarda. Era um bom guarda-redes?
Dizem que sim (risos).
Tem preferências clubísticas?
Neste momento, acidentalmente, sou do Sporting, porque estou na paróquia do Campo Grande, mas o meu clube era a Académica de Coimbra.
Tem boas relações com os seus vizinhos verdes e brancos?
Já tive mais. Agora nem tanto. Mas dou-me muito bem com o José Roquette.
Conhece o presidente Bruno de Carvalho?
Pessoalmente não conheço. Cheguei a conhecer o [José Eduardo] Bettencourt e o Filipe [Soares] Franco.
Costuma ir ao futebol?
De vez em quando. Houve uma altura que ia muitas vezes para as tribunas. Agora tenho uma cadeira lá.
Quando saiu do seminário, a sua primeira missão foi de coadjutor da diocese da Guarda. Deu aulas, foi fâmulo do bispo, destacado para Roma pelo Movimento por um Mundo Melhor, correu o país a explicar o Concilio Vaticano II. Desde cedo teve cargos de grande responsabilidade.
Os percursos que fazemos dependem muito dos condicionalismos. Nunca pensei ir para Roma para o Movimento por um Mundo Melhor. E isto mudou completamente a minha vida.
Chegou a Roma em 1964, em pleno Concílio Vaticano II, o principal evento da igreja católica no século XX. Heresias à parte, foi como estar na sala ao lado da Última Ceia
Até agora ainda não houve nada semelhante. Foi a primeira vez que se falou da relação da igreja com o mundo, por isso nunca mais terminava. Durou quatro anos. E já passaram cinquenta. Durante algum tempo o meu trabalho era anunciar as conclusões do concílio em conferências no país e no estrangeiro.
Foi aí que se começou a destacar em funções de coordenação.
Depois de seis anos como responsável do Movimento por um Mundo Melhor, conheci muito do mundo dentro da Igreja. Tínhamos atividades nacionais e internacionais e isso tornava-me conhecido. Em 1982, os bispos quiseram que eu pegasse num campo totalmente abandonado, a pastoral hospitalar e foi a partir dai que comecei a ir aos encontros internacionais e a ver que se deixava de falar em pastoral de doentes, mas em pastoral da saúde. A 11 de Fevereiro de 1985, o papa João Paulo II criou o Pastoral da Saúde e propuseram-me ficar à frente, cá em Portugal. Em 1992, [o primeiro-ministro] Cavaco Silva convidou-me para liderar a luta contra a droga. Foi neste universo que me tornei conhecido, porque eram lugares públicos de muita exposição. Fiquei, depois, mais três anos com o engenheiro António Guterres.
Como reagiu, quando foi convidado para alto-comissário Projeto Vida (de luta contra a droga)?
O meu nome foi avançado pelo [juiz] Armando Leandro, ex-coordenador. Eu disse que só podia aceitar se o meu cardeal quisesse. E fui falar com ele [D. António Ribeiro], que me disse: «aceita porque a Igreja tem de estar nessa frente».
Desde que foi ordenado, em 1955, passou por sete Papas e quatro Cardeais. Qual foi o Patriarca com que privou mais?
António Ribeiro.
E qual foi o mais à frente no seu tempo?
António Ribeiro.
O mais complicado de feitio?
É difícil. Para mim, pela minha relação pessoal, nenhum.
Foi amigo de todos eles?
Amigo, sem dúvida. D. Manuel Clemente trato por tu. D. José Policarpo também tratava. D. António Ribeiro, foi com ele que vim para Lisboa, em 1966. Em 67 ele foi feito bispo, depois em 68 eu preguei o retiro dos bispos, em que ele participou. Era o mais novo, praticamente da minha idade (eu tinha menos quatro anos). Travámos uma amizade muito grande.
Tratavam-se por tu?
Não. Naquela altura era diferente. Mas nunca mais me esqueço de um episódio com ele. Num dia, 12 de Maio de 1971, eu fui despachar com ele temas da Ação Católica. Eu tinha a responsabilidade da Equipa Nacional de Ação Católica, que era presidida por Sousa Franco e tinha o Jardim Gonçalves, Jorge Miranda, Paulo Marques… A casa do bispo António Ribeiro era na Basílica dos Mártires. Trabalhámos a manhã toda e quando chegou a hora do almoço, ele convidou-me para almoçar. Tive de declinar por já ter um compromisso de almoço, e ele respondeu: «Olhe, não sabe o que perde. Amanhã não deixe de ouvir o noticiário do meio-dia.» No dia seguinte, 13 de Maio, ao meio-dia, anunciavam que ele era o bispo de Lisboa, futuro Cardeal Patriarca. Tinha uma relação muito boa com ele. Sabe… De vez em quando escrevem ao bispo a dizer mal de nós, padres. É normal. Sabe o que é que o Ribeiro fazia? Mandava a carta para mim, para eu responder. Começava assim: «O senhor cardeal pede-me para responder à sua carta…» Aconteceu-me três vezes com ele.
E do cardeal Cerejeira, que memórias tem?
Não privei muito com ele. Eu vim definitivamente para Lisboa em 1966, ele terminou em 71. Recordo-me de fazer um retiro do episcopado e ter pregado ao Cardeal Cerejeira. Numa das conferências, desenvolvi um tema importante, «Responsabilidade Política da Igreja em Portugal». A dada altura, um bispo interrompeu-me: «Como é que você está a dizer uma coisas dessas?» Eu respondi que só estava a citar o texto da Gaudium et Spes, sobre responsabilidade politica da Igreja, e o cardeal interveio. «Temos de seguir o que foi dito pelo padre Vítor, que está a orientar o nosso retiro, porque é isso que a Igreja nos pede.»
Desde cedo soube o que queria ser quando crescesse. Mas se não fosse padre, o que gostaria de ter sido?
Gosto muito da intervenção, da comunicação. No enquadramento atual, gostava muito de intervir na sociedade.
Seria um político?
Talvez.
De que partido?
De algum partido que na altura surgisse, não sei quais.
Eu posso fazer esta pergunta de várias maneiras que não me vai dar uma resposta, pois não?
Claro que não. Uma das características de um padre é a total isenção partidária. Não política. Intervenção política tem o dever de ter, intervenção partidária não.
E a sua intervenção política está mais para a esquerda ou para a direita.
Penso que umas vezes passa para um lado, outras vezes para o outro. Para a direita radical nunca. Quando na estrutura dita de direita se esquece a pessoa, eu não posso estar. E uma vez ou outra esqueceu-se da pessoa. A defesa do ser humano e a igualdade entre seres humanos é a primeira razão de toda a intervenção humana.
Houve momentos em que sentiu que a dignidade humana tivesse sido beliscada por algum partido no poder? Fez alguma intervenção direta junto de responsáveis políticos por causa disso?
Junto de responsáveis políticos, apenas em conversas pessoais. Em reflexão na comunidade cristã, em reflexão teológico-pastoral, várias vezes senti o dever de colocar o acento na responsabilidade dos cristãos para que algumas coisas não acontecessem.
Nos últimos anos teve necessidade de fazer isso?
Sim. Nos últimos dez anos tive oportunidade de o fazer.
Dez anos é suficientemente abrangente para dois quadrantes políticos diferentes.
Para ver que a minha preocupação é com todos os partidos. Eu exijo aos partidos que sirvam a pessoa e que salvem o país não esquecendo o ser humano. Esta é uma tarefa na estrutura da Europa e do mundo, extremamente difícil. Eu rezo muito pelos responsáveis políticos.
E diz-lhes isso?
Digo aos que são cristãos. E com alguns tenho privado de perto.
Dos responsáveis políticos que desempenharam cargos de topo na administração pública em Portugal nos últimos anos, com quem privou mais de perto?
Com os ministros da saúde de todas as cores. Sou amicíssimo da Leonor Beleza, da Maria de Belém, da Ana Jorge, do Paulo Mendo.
Falava muito com Pedro Passos Coelho?
Falei muito com Pedro Passos Coelho quando eu era alto-comissário do Projecto Vida. Reunia-me com ele e com o Tozé Seguro e conversávamos os três muito bem.
E com José Sócrates?
Foi ele que me sucedeu no Projeto Vida, na luta contra a droga. Passados dois meses, telefonou-me, encontrámo-nos e estivemos quatro horas a falar sobre droga. No fim, disse-me que queria falar comigo por outro motivo. «Queria pedir-lhe licença para ficar com o seu staff. É pluripartidário, gente altamente competente e eu não posso dispensá-los.»
É prior da Igreja do Campo Grande [Paróquia dos Santos Reis Magos] desde 1997. Aos 65 anos chegava finalmente a pároco. Ficou contente? 
Foi um sonho de toda a minha vida. O lugar em que nos sentimos mais realizados como padres é numa paróquia.
Já estava farto de viagens e períodos em Roma?
Nunca me fartei de viajar.
Tem saudades?
Sim, gosto muito. Mas com a saúde tenho de ter cuidado porque há viagens muito longas. Timor, Austrália, Macau, Seul…
Que preocupação tem com a sua saúde?
Olhe, sobretudo prevenção. Faço análises sistematicamente, vou acompanhando tudo.
Mas tirando o seu problema de visão, tem mais alguma preocupação que implique cuidado?
Há 23 anos fui operado ao coração – coronárias. Por enquanto estão a funcionar bem.
Como é o seu dia?
Saio de casa às nove e um quarto, para vir para aqui, onde estou até às oito e meia, nove da noite. Temos missas todos os dias. Se não tiver missas de sétimo dia ou trigésimos dias, celebro a das sete e meia. Ao domingo celebro sempre ao meio dia e às sete e um quarto. E a missa das crianças, às dez e meia da manhã.
Como administrador paroquial, e com a sua idade, poderia não celebrar tantas missas?
Para mim é apaixonante. E não existem duas celebrações iguais.
Como prepara as homilias de domingo?
Leio muito durante a semana inteira. Quando chego ao sábado, já tenho a construção toda.
E adapta as homilias ao evangelho?
Não. Adapto o Evangelho às pessoas. De acordo com a missa.
A preparação que faz baseia-se mais nas Escrituras ou em informação?
Utilizo três fontes: os textos da Palavra, alguma interpretação que poderá advir de um livro ou outro que traga elementos interessantes e os jornais da semana.
Uma pessoa que lhe é próxima disse-me que uma das suas principais qualidades é manter a atualidade. Lê jornais todos os dias?
Tem de ser, os jornais são fundamentais para nós. Leio jornais todos os dias e o Expresso ao fim-de-semana. Sou assinante da Visão desde o número um e também passo os olhos no Courrier International.
Consegue ter tempo para ler isso tudo.
Não, mas tenho tempo para ler o que me interessa.
Usa computador?
Eu tenho ali um computador com as secretárias e trabalhamos juntos.
As suas missas ao domingo estão entre as mais concorridas. Qual é a média de fiéis?
Nas duas missas de sábado e seis de domingo temos entre 4500 e cinco mil pessoas.
E quantas crianças na catequese? Tem ideia?
São exatamente 620.
Sabe o número de cor?
Claro.
Quantos funcionários tem o Centro Social e Paroquial do Campo Grande?
Funcionários a quem o pago são, na totalidade, 83 pessoas.
E 350 voluntários, certo?
Sim. E tenho 430 jovens, mais cem jovens no clube de jovens em risco.
Quantos projetos é que o centro social desenvolve?
São 39 projetos.
É muita coisa a acontecer ao mesmo tempo. Os seus colaboradores dizem que delega e exige responsabilidades, mas não é control freak.
Ou se confia ou não.
E quando alguma coisa corre mal? 
Temos de conversar e não condenar, porque a conversar as pessoas encontram novos caminhos.
É uma paróquia grande, muitos fiéis. São generosos nas doações? 
Se não fosse a generosidade dos fiéis eu não aguentaria isto. A paróquia não era sustentável.
Ainda ouve pessoas em confissão?
Sim, claro. Há um princípio nesta casa: qualquer pessoa que chegue ali e diga «Quero confessar-me» entra logo no escritório e não espera.
E se estiver a trabalhar? Em reunião? 
Espera um bocadinho, mas a confissão tem prioridade absoluta, apesar dos nossos horários para esse efeito.
Quem quiser confessar-se com o padre Feytor Pinto…
É logo atendido.
Não lhe vou perguntar do que é que as pessoas falam em confissão, mas os temas estão a mudar com os anos? Adaptados a outros tempos e necessidades? Ou as pessoas precisam apenas de conversar, mais do que antes?
O sacramento da reconciliação já não é uma «câmara de tortura». É uma oportunidade para experimentar misericórdia e a ternura de Cristo. As pessoas chegam e têm coisas para dizer. E depois é normal uma conversa amiga que vai fluindo. No fundo, é um encontro entre dois pecadores: o que vem acusar-se e o que ouve. Porque o padre também é um pecador.
Quanto tempo demora uma confissão?
Depende. Há umas que demoram cinco a dez minutos e há outras de hora e meia.
E as pessoas levam penitência?
Sim. Mas comigo é sempre apenas uma Avé-Maria.
A paróquia do Campo Grande é uma das mais influentes em Lisboa. Tal como a de Benfica, ou São João de Deus ou Nossa Senhora de Fátima. Ou Belém, pelo seu valor histórico. 
Não tenho o direito a fazer essa avaliação. Os outros é que devem julgar as estruturas em que trabalhamos. Nunca elogio uma coisa em que esteja a trabalhar.
Consegue imaginar quem poderá ser o seu sucessor aqui um dia?
Não. Tenho conversado muito sobre isso com o senhor Cardeal mas não sei quem me vai suceder.
Tem 84 anos. Mais de sessenta de sacerdócio. Pensa em retirar-se?
Eu não penso. Quando o bispo disser «estás dispensado», eu saio.
Há pessoas que veria com bons olhos a substituí-lo? Será chamado a dar uma opinião sobre o seu sucessor?
Sim. É normal que isso aconteça. Há várias hipóteses, não há uma só solução.
É um cargo muito apetecível, ser pároco do Campo Grande?
Eu penso que nenhum padre quer uma paróquia por ela ser bonita e brilhante. Quando comecei a trabalhar na pastoral juvenil, a pastoral juvenil estava morta.
Não vai ser fácil sucedê-lo. Calçar as suas sandálias.
Não sei. Se eu poder ajudar ajudarei ao máximo. Mas com uma coisa que faço sempre: quando sair de uma tarefa não incomodo o meu sucessor. Ajudo-o, se for possível, mas incomodar, nunca.
Mas para já não imagina quando será?
Não faço a menor ideia.
Fátima, Maio de 1982
A tentativa de assassinato de João Paulo II
Privou de perto com João Paulo II. Em Maio de 1982 era o responsável pelos contactos com a imprensa durante a visita a Fátima, quando o Papa veio agradecer a Nossa Senhora por ter escapado ao atentado em Roma um ano antes.
Estive quatro dias, sempre ao lado dele.
Estava com ele quando o padre integrista espanhol Juan Krohn o tentou esfaquear?
Lembro-me do sítio exato, do lugar, a meio da esplanada, quando se caminhava em procissão.
Estava perto?
Estava ao lado. Eu vi o homem a pegar na faca.
O que é que lhe passou pela cabeça, naquele momento?
Não houve tempo para me passar nada pela cabeça. A intervenção dos guardas foi fulminante. Foi no momento.
Falou com ele sobre isso? 
Falámos no dia seguinte. Estávamos a jantar na nunciatura com a comissão dos trabalhos, éramos umas dez pessoas à mesa. A dada altura ele quis falar comigo pessoalmente, para treinar o português e conversámos sobre o atentado da véspera. Na altura em estava ligado à Pastoral Juvenil. «Nós, os jovens de Portugal, estivemos toda a noite em oração, por Vossa Santidade.» Ele olhou para mim e disse-me: «Eu fui à janela acompanhar a vossa oração» O Cardeal Casaroli [Secretario de Estado do Vaticano de 1979 a 1990] estava em frente e disse: «Santidade, a Secretaria de Estado também esteve em oração toda a noite. O Papa olhou para ele e respondeu com uma gargalhada: «Finalmente. En la Segreteria di Stato si prega.».

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