“Há pelo menos 14 erros no julgamento de Jesus”

Observador 25/3/2016

Joseph Weiler esteve em Lisboa para uma conferência sobre o julgamento de Jesus. O académico e especialista em direito diz que a condenação era inevitável e que "moldou a nossa forma de fazer justiça"
Joseph H.H. Weiler já era um intelectual de renome e provas dadas quando defendeu perante o Tribunal Europeu dos Direitos Humanos o direito da Itália a ter crucifixos nas paredes das escolas e o direito da França a não os ter. Mas foi só depois disso que ganhou a popularidade que hoje tem. Na altura, uns gabaram-lhe o feito, outros encostaram-no à parede. É que Joseph Weiler é judeu, judeu convicto, e houve quem achasse que não tinha nada que andar a meter o nariz onde não era chamado. “Como pode o filho de um rabi defender o crucifixo?” — perguntavam-lhe muitas vezes. E a todos eles, afáveis ou desagradáveis, generosos ou hostis, cristãos ou judeus, religiosos ou não religiosos, Joseph Weiler respondia o mesmo: “Não defendi o crucifixo. Defendi o direito da Itália a ser Itália e o direito da França, onde a cruz é proibida, a ser a França”, como contou numa entrevista.
Nascido em 1951, Weiler é autor de várias obras, entre as quais Uma Europa Cristã, editada em Portugal pela Principia, em 2003. Nela, o autor procura debater questões tão centrais, ainda hoje, sobre a identidade da velha e da nova Europa, as minorias religiosas, a atitude dos europeus em relação à política e a espiritualidade europeia. Além de reitor do Instituto Universitário Europeu de Florença, Joseph Weiler é co-diretor do programa LL.M. da Universidade Católica — orientado para o estudo do Direito num contexto europeu e global — e esteve em Lisboa esta semana para participar na conferência “O Julgamento de Jesus”, organizada pela mesma universidade.
Antes do início da conferência, aceitou responder a algumas perguntas do Observador, não descurando, em momento algum, o seu cachimbo e o copo de whisky, recostado no sofá. O tempo era curto e, por isso, decidimos compor algumas respostas com declarações do professor durante a conferência — esses acrescentos estão assinalados em itálico.
Uma das ideias que tem defendido — e que o traz aqui — é que o conceito de justiça na civilização ocidental tem as suas raízes no julgamento de Cristo. Pode explicar melhor essa ideia?
É difícil para mim explicar isso numa entrevista como esta, tendo em conta o tempo de que dispomos. Digamos que há, talvez, mais de três mil livros e outros milhares de artigos em que o tema do julgamento é abordado, mas o que é interessante é que não há um único livro, um único filósofo, um único teólogo, que tenha colocado esta simples questão: qual é, então, o significado do julgamento de Cristo para o conceito de justiça no Ocidente? É surpreendente como um julgamento tão importante, provavelmente o mais famoso na história da civilização ocidental, não tenha sido abordado deste ponto de vista. Em toda a literatura sobre o julgamento, há coisas que nunca aparecem.
Que coisas são essas?
Bom, fala-se sobre os procedimentos, se ele foi ou não legal, se foi ou não justo. Mas o que é relevante neste julgamento é a ocorrência do próprio julgamento. Ele moldou a nossa forma de fazer justiça.
Já durante a conferência, Weiler regressou a este tema: Haver um julgamento é precisamente um dos nossos três grandes princípios de justiça. Mesmo que o réu seja uma pessoa desprezível, ele tem direito a ser ouvido e julgado em tribunal. Os prisioneiros que estão detidos nas instalações de Guantánamo, por exemplo, por mais desprezíveis que possamos achar que eles são, têm direito a ser julgados. Nós sabemos que estarem detidos sem julgamento é injusto, e isso decorre do julgamento de Jesus. O segundo grande princípio de justiça é que não basta haver julgamento, ele tem de ser justo. Isso é algo que está enraizado na nossa civilização. E o terceiro é que, mesmo que o réu seja considerado culpado, ele não pode ser torturado e vítima de outros abusos, como sabemos que Jesus foi, porque mesmo as pessoas condenadas têm direito à dignidade. Todas essas nossas noções vêm do julgamento de Jesus.
Além desses aspetos que referiu, porque é que toda esta discussão em torno do julgamento continua a ser importante?
É importante pelo menos por duas razões. É importante para a população em geral — para religiosos, ateus, agnósticos — porque ajuda a perceber de que falamos quando falamos sobre justiça. Clarifica certos valores fundamentais da civilização ocidental. E para as pessoas religiosas, e talvez também para as outras, é importante porque quando se pensa no julgamento de Jesus normalmente pensa-se no que aconteceu antes do julgamento — se os judeus foram ou não responsáveis pela morte dele, se, pelo contrário, foram os romanos, etc. Não se pensa no próprio julgamento. Na literatura, o foco está quase sempre na relação entre cristãos e judeus. Santo Agostinho, por exemplo, defendeu que os judeus tinham de ser este povo pequeno, pobre e abatido para lembrar à Humanidade o que acontece quando se rejeita Cristo e foram precisos quase dois mil anos para o Vaticano os absolver, para deixar de considerá-los culpados pela morte de Jesus. No fundo, o que eu acho relevante hoje discutir não é a relação entre judeus e cristãos, mas a relação dos judeus com Deus e a relação dos cristãos com Deus. Acreditar em judeus e acreditar em cristãos é uma nova leitura do julgamento. É a minha leitura. É uma leitura pluralista.
Mesmo não sendo esse o seu foco, que análise faz do julgamento do ponto de vista jurídico?
Acho verdadeiramente que analisá-lo desse ponto de vista — se foi justo, se não foi, se Jesus era culpado, se não era culpado, se houve violações ou se não houve — é muito desinteressante. Lá está, a literatura existente já se encarregou disso. Mas, analisando então do ponto de vista material, se hoje, por exemplo, aparecesse um tipo a dizer que é filho de Jesus, a maior parte dos cristãos diria que ele está louco, que lhe falta um parafuso na cabeça. Que aquilo que ele está a dizer é uma blasfémia.
Portanto, é natural que há dois mil anos, quando Jesus apareceu a dizer que era filho de Deus, as pessoas tenham reagido mal e o tenham acusado de blasfémia. Por outro lado, apesar de hoje se alegar que durante o julgamento foram cometidas violações das regras, e só eu registei 14, não temos forma de saber quais eram os procedimentos e regras da altura.
O que normalmente é citado como prova de que se tratou de um julgamento injusto são as regras e normas contidas na Mishná o primeiro compêndio da Lei Oral judaica, a tradição que regia os destinos da nação judaica, que foram escritas 200 anos após o julgamento. Bento XVI, no segundo volume da sua obra Jesus da Nazaré, intitulado Jesus da Nazaré: Semana Santa, tem algumas coisas interessantes a dizer sobre o julgamento e sobre a tentativa de haver um julgamento justo. Mas… a quem é que isso interessa hoje em dia? Não a mim, certamente. E se nos meus seminários e conferências refiro as questões legais é só porque preciso de passar por elas para falar sobre outras coisas muito mais importantes.
Porque é que as autoridades levaram Jesus a julgamento?
Por duas razões. Primeiro, porque Jesus disse que era filho de Deus e, no entendimento dos judeus, isso era considerado uma blasfémia. Tal como referi antes, se isso acontecesse hoje a pessoa em causa também seria recriminada. E segundo porque, de acordo com o livro dos Actos dos Apóstolos, cuja autoria é atribuída a São Lucas, embora Jesus dissesse que não estava a tentar mudar a lei, em muitos pontos fundamentais ele estava realmente a tentar mudá-la, e isso foi considerado uma ofensa séria. Lucas diz que Jesus tentou exortar as pessoas a afastarem-se da Lei de Moisés. Por isso, não acho que seja assim tão surpreendente que ele tenha sido levado a julgamento. Ainda hoje, sempre que surge uma religião nova, a religião existente reage a isso.
Os Evangelhos diferem nos relatos do julgamento. Até que ponto é que essas diferenças são relevantes?
Em Lucas e Mateus, as respostas de Jesus durante o interrogatório são mais ambíguas, mas acho que devemos guiar-nos por Marcos, que é o mais antigo dos Evangelhos. Está mais próximo dos acontecimentos e, talvez por isso, é o mais respeitoso para com os acontecimentos. Em Marcos, percebemos que Jesus acreditava profundamente naquilo que ele era e na importância daquilo que estava a fazer. Percebemos que Jesus, durante o interrogatório, mantém-se sempre firme, altivo, disposto a dizer a verdade conforme a entendia, mesmo sabendo quais as consequências que iria ter de enfrentar.
Escreveu num artigo que o “problema do julgamento não é simplesmente o facto de ter resultado na morte de Jesus, o problema do julgamento é Jesus ter sido condenado”. Pode explicar-nos melhor?
Nos meus seminários, há sempre um momento mágico, um momento de reflexão e introspeção. Começamos por ler os relatos do julgamento e logo aí desenvolve-se um sentimento muito forte de injustiça. As pessoas começam a perguntar “mas como é que pode ter acontecido isto a esta pessoa tão maravilhosa?”.
Eu pergunto-lhes: “O que acham então que devia ter acontecido em vez do julgamento?” E a primeira resposta que me dão, quase por instinto, é que Jesus devia ter sido exonerado. E eu pergunto novamente: “Então e depois? O que iria acontecer? Não haveria crucificação? Não haveria ressurreição? Jesus cresceria para ser um homem velho com uma longa barba?” E é aí que toda a gente pára, e começa a pensar verdadeiramente no assunto.
O martírio de Jesus é diferente de todos os outros martírios. Em todos os outros, desejamos sinceramente que não tivesse acontecido o que aconteceu, mas no caso de Jesus é mais complicado. Imaginemos que o Sinédrio dizia que ele não era culpado. O que aconteceria então ao cristianismo? Todo o cristianismo é baseado na sua inocência, na sua crucificação e ressurreição. No contexto em que Jesus vivia — e tendo em conta o que ele fazia e dizia — a sua morte era inevitável.
Uma das questões a que se propõe responder nesta conferência é por que razão as autoridades optaram pela crucifixação em vez de uma execução sumária, que à época era a prática mais simples e comum. Pode avançar já com uma explicação?
Essa é uma questão importante. Porque, de facto, aquilo que nos ocorre logo perguntar é: então, se Jesus tinha de morrer, e morrer inocente, porque teve sequer de haver um julgamento? Porque é que ele foi torturado e crucificado? A resposta não é fácil, mas acho que basta ver como é que os romanos resolviam estes assuntos. Eles crucificaram milhares de pessoas e crucificaram-nas de uma forma cruel. Era essa a resposta deles para as ofensas consideradas graves. Desse modo, ficava bem vincado o poder de Roma. E ao lado de Jesus estavam outras duas pessoas, não esqueçamos isso.
As suas propostas e leituras nem sempre têm sido bem recebidas. Que reações tem tido a este tema do julgamento de Jesus?
Aquilo que digo sobre o julgamento de Jesus costuma deixar alguns cristãos e alguns judeus muito zangados e outros cristãos e outros judeus muito contentes. É igualmente ofensivo e não ofensivo. Os judeus ficam muito zangados porque durante dois mil anos disseram que não eram responsáveis pela morte de Jesus. E nos meus seminários e conferências eu digo que eles foram, efetivamente, responsáveis pela morte de Jesus. E os cristãos ficam muito zangados porque eu digo que era isso que Deus queria. Eu digo que os judeus mataram Jesus porque, de acordo com a lei que Deus lhes deu, era isso que tinha de ser feito.
E aqui em Portugal? Também espera más reações?
Não. As pessoas vão ser muito simpáticas e bem-educadas.
Porquê?
Porque os portugueses são simpáticos e bem-educados. Mas o que vão eles pensar? Isso eu não sei. Talvez pensem que sou simplesmente estúpido.

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