O TÚMULO VAZIO
FREDERICO LOURENÇO* | EXPRESSO, 2016.03.25
Um olhar histórico sobre a morte e a ressurreição de Jesus Cristo, o mistério maior da fé que se coloca há dois mil anos. Para crentes e para todos os outros
Há quase dois mil anos, numa madrugada de domingo em Jerusalém, três mulheres iam a caminho de um sepulcro recentemente talhado na rocha. Estavam muito preocupadas: como remover a enorme pedra que fora utilizada para fechar a sepultura? Já nascera o sol e elas levavam consigo perfumes que tinham comprado para embalsamar o morto. Esta etapa do rito fúnebre estava deslocada da ordem correta, pois o que teria sido normal era que tivessem embalsamado o morto antes de fecharem a sepultura com a pedra. Mas não aconteceu assim. O sepultado tinha morrido (e de morte bem cruel) quando estava para começar o sábado judaico. Não houvera tempo para tratar o seu corpo com perfumes.
Ao chegarem ao túmulo, as mulheres viram, com espanto, que alguém já removera a pedra. Entraram dentro do túmulo: e foi aí que ficaram apavoradas. O morto tinha desaparecido. Lá dentro, estava sentado um jovem, vestido de branco, que elas não conheciam. O jovem diz às três mulheres: “é Jesus, o Nazareno, que procurais, o crucificado? Ressuscitou. Não está aqui” (Marcos 16:6). O jovem recomenda às três mulheres que vão dizer a Pedro e aos outros discípulos que Jesus foi à frente, rumo à Galileia: na Galileia é que eles o verão. As mulheres fogem do sepulcro, dominadas por um misto de tremor e tresloucadamente (a palavra grega é ékstasis, donde vem a nossa palavra êxtase). Só que elas não obedeceram às instruções dadas pelo jovem. Na verdade, aquelas mulheres “nada disseram a ninguém. Tinham medo, pois” (Marcos 16:8).
O TÚMULO VAZIO EM MARCOS, MATEUS E LUCAS
É nestes termos que o mais antigo relato da ressurreição de Jesus nos descreve o momento arrepiante em que Maria Madalena, Maria (mãe de Tiago) e Salomé depararam com o túmulo vazio. O Evangelho de Marcos termina assim, no ar, como que (musicalmente falando) em cadência interrompida. É sabido que, posteriormente, um cristão anónimo, insatisfeito com este final abrupto, tratou de escrever mais umas frases em jeito de continuação, também para que o final do Evangelho de Marcos condissesse com o final dos outros três Evangelhos canónicos, em que os discípulos têm “experiências imediatas” de Jesus ressuscitado, nas quais Jesus conversa (e até come) com eles.
As palavras proferidas por Jesus ressuscitado e as circunstâncias em que essas palavras são ditas (que desmentem, no caso de Lucas, o que o jovem vestido de branco diz às mulheres no Evangelho de Marcos) apresentam diferenças significativas quando comparamos os Evangelhos. Diferenças que trazem uma grande mais-valia: obrigam-nos a pensar. À semelhança do que acontece quando lemos qualquer texto pertencente àquele que, na minha opinião, é o mais extraordinário livro da história da humanidade (a Bíblia), estas discrepâncias obrigam-nos a formular perguntas que não são fáceis. E quem sabe se não terá sido por isso que Deus (existindo) nos deu este livro para as mãos, tendo tido primeiro o cuidado de apetrechar as nossas cabeças de cérebros? Pois precisamos deles para o esforço de raciocínio e de interrogação que a leitura do livro exige. Não interessa lê-lo passivamente. A Bíblia requer uma leitura humilde e ativa. E requer que olhemos sem pestanejar para os problemas que nos levanta.
A pergunta mais imediata é imensamente sugestiva para não-crentes que, como eu, se interessam pela fascinante figura histórica que foi Jesus de Nazaré; e deveria ser basilar para crentes que veem Nele o filho de Deus. E a pergunta é esta: qual é o grau de fidedignidade dos relatos que lemos nestes quatro Evangelhos a respeito da ressurreição de Jesus? Todos eles falam num túmulo vazio. Mas donde lhes veio essa informação? Já mencionámos que Marcos, que redigiu o mais antigo relato que conhecemos sobre o túmulo vazio, nos diz que as testemunhas oculares (as três mulheres) ficaram tão apavoradas que não contaram nada a ninguém.
Ora, em nenhum momento do seu Evangelho nos é dito por Marcos que ele, o evangelista, presenciou pessoalmente aquilo que nos está a narrar. O mesmo vale para Mateus e para Lucas. Também é facto que, se os três se arrogassem o estatuto de testemunhas oculares, ainda maiores seriam as nossas dificuldades com estes textos fundadores do Cristianismo. É que os relatos dos evangelistas não são coincidentes. E se há quatro versões distintas, a lógica mais básica impede-nos de aceitar que as quatro possam ser verídicas. Podem estar as quatro erradas. Mas não podem é estar todas certas.
Em Lucas, tal como em Marcos, temos como testemunhas Maria Madalena e Maria (mãe de Tiago); mas Lucas não as faz acompanhar por Salomé, como em Marcos, mas sim por uma tal de Joana. Além destas três mulheres, há outras (não nomeadas) que estão também com elas. Este “coro trágico” de mulheres é exclusivo do Evangelho de Lucas. Em vez de elas verem um jovem sentado dentro do túmulo, estas mulheres descritas por Lucas veem dois homens. Estão vestidos de trajes resplandecentes e dão às mulheres a notícia fulminante de que Jesus ressuscitou. Tal como as mulheres em Marcos, as do Evangelho de Lucas também ficam apavoradas. Mas ao contrário do que fazem as duas Marias e Salomé em Marcos, em Lucas as mesmas Marias e Joana contam tudo aos apóstolos.
No entanto, estes não lhes dão crédito e (de forma bastante machista) acham que elas estão a dizer uma “parvoíce” (Lucas 24:11). Pedro, porém, não deve ter achado as mulheres assim tão parvas: levanta-se e vai a correr até ao sepulcro, para ver o que se passa com os seus próprios olhos. Olha lá para dentro e não vê nada. Só vê, abandonadas, as ligaduras com que o corpo de Jesus tinha sido envolto aquando da sepultura.
Consideremos agora o relato de Mateus: no caso deste Evangelho, são só duas as mulheres que chegam ao túmulo no domingo de manhã. São as nossas já conhecidas Marias (a Madalena e a mãe de Tiago). Unicamente neste Evangelho dá-se um sismo. As duas Marias veem então um anjo do Senhor “com aspeto de relâmpago” (Mateus 28:3). Os guardas que estão a guardar o túmulo ficam “como mortos” (estes guardas só existem no Evangelho de Mateus; mais nenhum evangelista os refere). O anjo informa as duas mulheres que Jesus ressuscitou. Elas saem depressa, eufóricas de alegria (e não apavoradas, como em Marcos e Lucas).
De repente, acontece uma coisa com que nem Marcos nem Lucas tinham sonhado: aparece-lhes Jesus em pessoa. Diz-lhes “não temais” (embora elas não estivessem com medo) e dá-lhes a incumbência de transmitir aos “irmãos” Dele a mensagem de que devem ir até à Galileia: será na Galileia que o contemplarão. E assim acontece em Mateus e em João (mas não em Lucas). Repare-se que, no Evangelho de Mateus, nenhum discípulo de Jesus (nem sequer Pedro) vai ao túmulo para ver, com os próprios olhos, o que se passou: mas isso sucede (como referimos) em Lucas. E acontece também em João.
O TÚMULO VAZIO EM JOÃO
É no Evangelho de João que encontramos o relato mais divergente sobre as circunstâncias relativas ao túmulo vazio. A diferença fulcral é que só neste Evangelho nos é dito que o autor do texto viu com os seus próprios olhos aquilo que está a descrever. João afirma categoricamente que viu o túmulo vazio: foi o primeiro a vê-lo, aliás (João 20:8), antes mesmo de Pedro. No Evangelho de João, as três mulheres (que vão ao túmulo em Marcos e Lucas) e as duas mulheres (de Mateus) estão agora reduzidas a uma só: Maria Madalena.
Madalena é o verdadeiro denominador comum dos quatro relatos sobre o túmulo vazio. É ela que chega sozinha ao túmulo no domingo de manhã: ainda estava escuro (contrariamente ao que nos diz Marcos, que afirma explicitamente que já nascera o sol). Ao ver a pedra removida da entrada, Madalena desata a correr. Vai dar logo a notícia a Pedro e ao discípulo “que Jesus amava” (João 20:2), que, por sua vez, se põem também a correr. Vão todos em alvoroço até ao túmulo, mas quem corre mais depressa é o próprio autor do Evangelho, o discípulo amado. É ele que chega primeiro ao túmulo. Espreita lá para dentro e vê os panos depostos. Pedro chega logo de seguida e entra no túmulo. O discípulo amado entra atrás dele. “Viu e acreditou”.
“Pai, perdoa-lhes, pois não sabem o que fazem” — esta frase é demasiado maravilhosa para podermos prescindir dela
Quando, muitos anos mais tarde, o discípulo amado escreveu o seu Evangelho, comentou a propósito deste momento que nem ele nem Pedro tinham compreendido o que tinham diante dos olhos, pois “ainda não conheciam a passagem da Escritura, segundo a qual Ele tinha de ressuscitar dos mortos” (João 20:9). Nós, leitores modernos, podemos considerar perdoável este alegado desconhecimento da Escritura por parte dos dois discípulos, atendendo ao facto de em nenhuma passagem do Antigo Testamento se encontrar escrita noção semelhante.
Pedro e o evangelista voltam “para junto dos seus” e só Madalena fica sozinha a chorar no exterior do túmulo. Por entre as lágrimas, ela espreita lá para dentro e vê dois anjos sentados. Os anjos (que tinham acabado de descer do céu, ou então eram visíveis apenas para Madalena, já que Pedro e João não os tinham visto) dão-se conta do choro dela e perguntam-lhe porque está a chorar. Madalena responde “porque levaram o meu Senhor e não sei onde o puseram”. Madalena volta-se depois para trás e, nas palavras do evangelista, vê Jesus sem saber que era Jesus. Também Ele lhe pergunta a razão do choro. Julgando estar a falar com o jardineiro, Madalena pergunta-Lhe (num momento de subtil ironia poética digna da tragédia grega) se foi Ele que levou o corpo Dele. Jesus diz o nome dela: “Maria!” É nesse momento (supremamente arrepiante mesmo para quem já leu o Evangelho de João centenas de vezes) que Madalena percebe. Tenta tocar-Lhe, mas Jesus não permite — o que não deixa de ser estranho, pois, uns versículos mais à frente, Jesus permitirá que Tomé ponha o dedo nas feridas das Suas mãos e a mão no sítio onde fora trespassado pela lança.
CRISTO NA CRUZ
Falarmos nas marcas dos pregos nas mãos de Jesus e no flanco trespassado pela lança conduz-nos à reflexão sobre o modo como os quatro evangelistas nos informam sobre a crucificação de Jesus. O único Evangelho que nos permite dizer que Jesus foi pregado (e não atado) na cruz é o de João: só João menciona os pregos (hêloi em grego, João 20:25). Também é só neste Evangelho que Jesus é trespassado pela lança. Só neste Evangelho é que a mãe de Cristo está junto da cruz (mãe essa que, unicamente no Evangelho de João, não tem nome: contrariamente a Mateus, Marcos e Lucas, João nunca diz que a mãe de Jesus se chamava Maria). Só neste Evangelho é que Jesus carrega Ele próprio a cruz para o calvário: nos outros três, a cruz é levada por Simão de Cirene. Por outro lado, se olharmos para o relato da Paixão de Cristo pelo prisma do Evangelho de Lucas, são outras as diferenças que chamam a nossa atenção. Se mais nenhum Evangelho nos tivesse chegado a não ser o de Lucas, em igreja alguma da Terra veríamos a imagem de Jesus coroado de espinhos. Pois a coroa de espinhos não existe em Lucas. Neste Evangelho, Jesus também não é flagelado. Muito diferente seria, por conseguinte, o horripilante filme de Mel Gibson “A Paixão de Cristo” (2004) se tivesse baseado o seu guião apenas em Lucas. Mais significativo para todos os cristãos é um elemento que existe somente no relato oferecido por Lucas da Paixão de Jesus: a frase, dita por Cristo na cruz, em que Ele perdoa a quem o crucificou (“Pai, perdoa-lhes, pois não sabem o que fazem”, Lucas 23:34). Ausente de uma quantidade impressionante de manuscritos antiquíssimos do Evangelho de Lucas (e por isso considerada inautêntica pela mais rigorosa filologia bíblica), esta frase — arrisco dizê-lo — é demasiado maravilhosa para podermos prescindir dela, mesmo que reflita apenas aquilo que cristãos de épocas posteriores gostariam que tivesse sido dito por Cristo na cruz.
Em Mateus e em Marcos, o crucificado, antes de morrer, pergunta a Deus por que razão O abandonou (citando o Salmo 22). Em Lucas, cita antes de morrer o Salmo 31: “nas Tuas mãos entrego o meu espírito”. Mas o autor do Evangelho de João, que alega ter estado junto da cruz (João 19:26), não regista que Jesus tivesse citado algum salmo nos últimos instantes da sua vida. Antes de morrer, o Jesus de João diz apenas “está cumprido”.
A TESTEMUNHA OCULAR
Para prosseguirmos, temos três hipóteses. A primeira corresponde à posição tradicional da Igreja, que consiste em ver os quatro Evangelhos como (permita-se-me esta analogia) quatro grandes palheiros onde a verdade está presente em todos sob a forma de agulhas cujo paradeiro Deus conhece, mas que nenhum ser humano pode ter a veleidade de conseguir encontrar. Por outras palavras, apesar de sobre a morte e ressurreição de Jesus os quatro Evangelhos se contradizerem flagrantemente, para a Igreja a verdade está presente em todos.
A propósito das descrições divergentes do que se passou no túmulo vazio, dissemos acima que, quando temos quatro relatos que não coincidem sobre determinada realidade, somos impedidos pela lógica mais básica de aceitar que os quatro possam ser simultaneamente verídicos. Ou bem que estava um jovem sentado dentro do túmulo vazio (Marcos), ou dois homens (Lucas) ou um anjo (Mateus) ou dois anjos (João). Ou bem que foram três mulheres ao túmulo (Marcos e Lucas), duas mulheres (Mateus) ou só uma mulher (João). Estas personagens não cabem todas dentro e à porta do túmulo ao mesmo tempo. E mesmo que decantássemos a questão de modo a nos focarmos só na oscilação entre uma figura masculina (jovem ou anjo) e duas figuras masculinas (homens ou anjos), mesmo assim não faz sentido admitirmos que ambas as versões possam ter validade equivalente. Aceitando como realidade factual que Jesus foi crucificado numa sexta-feira da década de 30 do século I da nossa era e que, no domingo de manhã, o túmulo, onde tinha sido colocado o cadáver, estava vazio, temos de perguntar: o que aconteceu nessa sexta-feira? O que aconteceu nesse domingo de manhã? Quem nos pode dizer?
A segunda hipótese corresponde à posição defendida por leitores ateus da Bíblia: nenhum dos quatro relatos da morte e ressurreição de Jesus é verídico. Do ponto de vista da crítica ateia, o que lemos nestes relatos é pura invenção. Para os críticos ateus mais radicais, nem os maus-tratos sofridos por Jesus são verídicos, pois as chicotadas, as cuspidelas e as bofetadas não são mais do que uma ficção inspirada numa famosa passagem de Isaías (50:6): “dei as minhas costas aos chicotes, as minhas faces às bofetadas, e não virei a cara ao ultraje das cuspidelas”.
Entre o extremo de irracionalidade da primeira hipótese e o extremo de racionalidade da segunda, não será possível equacionar uma terceira hipótese algures no meio? Não poderá um dos quatro relatos ser substancialmente verídico? E qual deles será? Já vimos que há três evangelistas que nunca, em momento algum dos seus Evangelhos, afirmam terem sido testemunhas oculares dos eventos por eles narrados. Em paralelo, há um evangelista (João) que afirma categoricamente o seu estatuto de testemunha ocular: diz-nos que viu com os seus próprios olhos o túmulo vazio (João 20:8); que esteve junto da cruz (19:26); que entrou no palácio do sumo sacerdote quando Jesus foi preso (18:15); e que reclinou a cabeça no peito de Jesus na Última Ceia (13:23).
A ilação mais natural só pode ser esta: que o relato, em que seria concebível depositar confiança, é aquele que foi escrito por quem nos garante que foi testemunha ocular dos acontecimentos por ele narrados. João diz que esteve lá. Se vamos desconfiar dele, estamos a rotulá-lo de impostor. Mais: cada vez que preferimos à sua versão outro relato alternativo (seja ele de Mateus, de Marcos ou de Lucas), estamos a chamar-lhe mentiroso.
Se o fizéssemos, também não seríamos os primeiros. Desde o século XIX, a análise crítica do Novo Testamento tem levado a maior parte dos estudiosos a achar demasiado ingénua a suposição de que o autor do quarto Evangelho possa estar a dizer a verdade sobre o seu estatuto de testemunha ocular. No século XX, sob influência do grande Rudolf Bultmann, quase se tornou tabu afirmar que o Evangelho de João pode ter algum valor enquanto documento histórico. Até se tornou tabu afirmar, em dada altura, que o texto (a despeito da sua indesmentível coerência estilística) é obra de um só autor. Ainda hoje, uma maioria significativa de estudiosos nega que o autor do Evangelho de João possa ter sido testemunha ocular dos acontecimentos por ele narrados. As razões são essencialmente duas: ou porque a vida e ações de Jesus no Evangelho de João são demasiado contraditórias relativamente a Marcos, Lucas e Mateus (onde reside, para a maior parte dos cristãos, a verdade “mais fidedigna” sobre Jesus); ou então porque os dizeres de Jesus neste Evangelho — os longos e extraordinários monólogos — são vistos como inverosímeis enquanto registo do que foi realmente dito, valendo em vez disso como elaboração teológica do significado da missão de Jesus, mas não como palavras reais, ditas pelo Jesus real.
No entanto, não podemos perder de vista o seguinte dado objetivo: interpretar como mera ficção literária a figura do discípulo amado é apenas uma possibilidade de interpretação. Nada a confirma; mas também nada a refuta concludentemente. A situação é a mesma se optarmos por levar à letra as informações que nos são dadas no texto sobre a sua autoria: é certo que nada as confirma de forma irrefutável, mas o processo de as refutar implica à partida contradizer e desautorizar o que é deliberadamente dito no próprio texto sobre a autoria do mesmo.
Um dos argumentos aduzidos por aqueles que interpretam o discípulo amado como mera ficção literária prende-se com a inverosimilhança de o apóstolo João, filho de Zebedeu e pescador da Galileia, ter tido capacidade intelectual (e conhecimentos de língua grega) para escrever um livro com a densidade teológica e com o rasgo filosófico do quarto Evangelho. No entanto, é preciso notar que, embora o autor do texto refira a sua presença nos momentos da vida de Jesus acima mencionados, ele nunca se identifica como o pescador João, filho de Zebedeu. Desse ponto de vista, o Evangelho de João é tão anónimo como qualquer um dos outros três Evangelhos: nunca o nome do autor é referido no interior do texto. É inegável, porém, que a tradição de associar o “João” do título “Evangelho segundo João” ao filho de Zebedeu já vem desde os primeiros séculos do Cristianismo.
A ressurreição de Jesus Cristo levanta a todos nós a pergunta suprema sobre “o que é a verdade?”
Admitindo que o autor do Evangelho possa perfeitamente ter-se chamado João, é possível colocar a hipótese de este discípulo amado ter sido outra pessoa que não o pescador, filho de Zebedeu. No seu livro “Die johanneische Frage: ein Lösungsversuch”, o teólogo alemão Martin Hengel propôs, em 1993, uma identidade não inverosímil para o discípulo amado: um jovem pertencente a uma das famílias da elite sacerdotal de Jerusalém (daí o facto de ele ter podido entrar no palácio do sumo sacerdote quando Pedro, o pescador, foi obrigado a ficar na rua, João 18:15), detentor de boa escolaridade hebraica e helénica. Jovem esse que (à semelhança de outros homens da sua classe social, como Nicodemos ou José de Arimateia) se encantou com a extraordinária mensagem de Jesus, o seguiu, se afeiçoou a Ele e recebeu em troca a afeição do seu mestre, que o destaca dos demais a ponto de lhe confiar a incumbência de velar pela sua mãe. Este discípulo amado terá vivido até uma idade avançada (isso está prenunciado nas palavras de Jesus ressuscitado em João 21:23). Após longas décadas de meditação sobre o impacto da figura e das palavras de Jesus, este João deixou o seu testemunho do que foi a passagem, pelo mundo humano, do “verbo” divino feito carne.
A “VERDADE”
Assim, uma explicação racional para as discrepâncias entre o relato de João sobre como foram as últimas horas da vida de Jesus e as descrições (também discrepantes entre si) de Mateus, Marcos e Lucas é simples: João esteve presente. Mateus, Marcos e Lucas não. Estes três evangelistas não registam no seu relato da Última Ceia um acontecimento que só João narra: Jesus a lavar os pés aos discípulos. Por outro lado, a Última Ceia de João não é uma refeição pascal. Nem Jesus institui, no seu decurso, a Eucaristia (como sucede em Mateus, Marcos e Lucas). Quando chegamos ao momento da prisão e do julgamento de Jesus, João dá-nos pormenores únicos, mas compatíveis com a suposição de que ele esteve realmente lá. Só João nos diz que quem cortou a orelha ao escravo do sumo sacerdote foi Pedro. Só João nos diz que o escravo se chamava Malco. Quando Jesus é preso e levado ao palácio de Anás, só João (que era “muito lá de casa”) nos diz que Anás era sogro de Caifás. Só João diz (18:19) que estava frio quando Jesus foi preso: daí o fogo a que Pedro se aquece, fogo também mencionado por Marcos (14:54), mas sem a informação meteorológica de quem lá esteve, registada por João. Só João nos transmite que Pilatos disse a frase “eis o homem” (19:5).
Já vimos acima os elementos relativos à crucificação de Jesus que só aparecem no Evangelho de João. Faltaria ainda referir o facto de, somente neste Evangelho, Cristo na cruz dizer (compreensivelmente) que tem sede; de só neste Evangelho o letreiro por cima da cruz (identificando o crucificado como “rei dos judeus”) ser trilingue; de só neste Evangelho os soldados partirem as pernas aos criminosos crucificados juntamente com Jesus, prática historicamente autêntica, como se comprova a partir do facto de um grupo de arqueólogos ter encontrado o esqueleto de um crucificado em Jerusalém com as pernas partidas (ato horrífico chamado crurifragium em latim).
Já vimos acima que só João nos regista a presença da mãe de Cristo junto da cruz. Ele, João, também lá estava. Com Maria e João, estava ainda Maria Madalena, que será a primeira testemunha da ressurreição de Jesus. É no papel de Madalena como certificadora da ressurreição que os quatro Evangelhos concordam. É, pois, sobre ela que recai a responsabilidade de garantir, em primeira mão, a “verdade” da ressurreição.
Falar em “verdade” neste contexto é consabidamente problemático, mas a problemática da verdade é fulcral no Evangelho de João. Basta pensarmos que a própria palavra “verdade” (em grego alêtheia) aparece 25 vezes no seu Evangelho; em Mateus, por contraste, cujo Evangelho é muito mais longo, só ocorre uma única vez. A ressurreição de Jesus levanta a todos nós a pergunta suprema sobre “o que é a verdade?” Pergunta que, decerto não por acaso, só no Evangelho de João alguém coloca a Jesus (João 18:38). E à qual Jesus responde, sabiamente, por meio do silêncio.
Qual será, então, a verdade da ressurreição de Jesus? Qual será a verdade do túmulo vazio? A resposta do crente é — claro está — a própria crença, território que não me compete pisar. O ateu encontrará talvez uma explicação racional no boato que Mateus pretende combater no final do capítulo 27 do seu Evangelho: os discípulos fizeram desaparecer o corpo de Jesus, de modo a dar a ilusão de que tinha ressuscitado. O túmulo estava vazio porque o corpo fora propositadamente removido.
Para aqueles que não são crentes nem ateus, mas que leem de espírito aberto estes textos indispensáveis, constituirá porventura ressurreição suficiente o facto de, neste mundo onde Jesus de Nazaré morreu, podermos afirmar que, bem vistas as coisas, Ele afinal não morreu. Porque a verdade é esta: tanto crentes como não-crentes andaremos às voltas com Jesus nas nossas cabeças, enquanto houver seres humanos na Terra.
* Professor da Universidade de Coimbra
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