“O julgamento de Jesus”

P. Gonçalo Portocarrero de Almada
Observador 19/3/2016

O nome de Cristo ainda suscita enormes paixões e ódios intensos. Talvez porque, mesmo os que o negam não conseguem explicar por que razão, dois mil anos depois, ainda se fala tanto de Jesus de Nazaré.
Embora o julgamento de Jesus de Nazaré não tenha ocorrido em Portugal, nem portanto a cargo da tradicionalmente morosa justiça lusitana, a verdade é que ainda prossegue, não obstante os vinte séculos entretanto decorridos. Com efeito, não só não prescreveu como, na semana passada, foram muitos os que, a convite da Universidade Católica Portuguesa, foram ouvir uma magistral lição sobre o mais famoso processo judicial de todos os tempos.
De facto, no dia 14 de Março, o grande auditório da Fundação Calouste Gulbenkian foi pequeno para acolher a multidão que aí assistiu a uma aula sobre “O julgamento de Jesus”, pelo Prof. Joseph H. H. Weiler, professor de Direito da Universidade de Nova Iorque e actual reitor do Instituto Universitário Europeu, em Florença. Judeu praticante, foi ainda, no dizer da organização deste evento, o advogado “de uma série de Estados perante o Tribunal Europeu dos Direitos do Homem no famoso caso Lautsi, no qual conseguiu obter uma decisão” judicial que reconhece “que a presença de crucifixos numa escola pública (…) não viola a Convenção Europeia dos Direitos do Homem, revertendo uma decisão contrária da primeira instância”.
O tema da conferência não podia ser mais adequado a este tempo quaresmal. Seguindo um método histórico-crítico, o Prof Weiler propôs-se analisar o contexto histórico, político, religioso e jurídico do julgamento de Cristo pelo Sinédrio, sobretudo do ponto de vista processual. Que uma tal análise tenha sido feita à margem da fé cristã e, mais ainda, por um judeu assumido, deu à intervenção um especial interesse e garantiu, à partida, a objectividade científica das suas conclusões.
Muito haveria a dizer sobre os resultados da investigação histórico-jurídica do Prof. Weiler, bem como sobre as suas interessantes, mas mais discutíveis, interpretações teológicas do julgamento de Cristo. Na sua abalizada opinião, esse processo, cujas repercussões culturais vão muito além do âmbito confessional ou meramente religioso, estabeleceu três principais consequências, que o jurisconsulto norte-americano considerou estruturantes da cultura jurídica moderna, bem como da civilização ocidental. A saber: todas as pessoas, desde as socialmente mais importantes até às aparentemente de mais baixa condição, têm direito a serem julgadas; todos os julgamentos devem ser justos, ou seja, realizados de acordo com as exigências da justiça e as normas processuais vigentes; e todas as pessoas, também as condenadas pelos piores crimes, têm direito a um tratamento de acordo com a dignidade humana.
Estes princípios podem parecer demasiado óbvios, até porque são prática corrente em muitos países ocidentais, nomeadamente Portugal. Contudo, estes axiomas são ignorados em muitos países do mundo onde, por sistema, os mais poderosos não são responsabilizados judicialmente; onde ainda se fazem processos sumários, que atentam contra os direitos mais elementares dos indivíduos; e onde nem sempre os arguidos, ou condenados, são respeitados na sua dignidade pessoal.
A este propósito, recorde-se a indecência moral da recente nomeação do ex-presidente do Brasil, sobre o qual recaem fortes suspeitas de vários crimes; as condenações – recorde-se o caso da paquistanesa Asia Bibi, sentenciada com a pena de morte por alegada blasfémia – e execuções sumárias de cristãos e não só, em países fundamentalistas islâmicos; ou ainda as condições infra humanas a que são sujeitos os terroristas detidos em Guantánamo, não obstante as reiteradas promessas do chefe de Estado norte-americano de encerrar um presídio que, manifestamente, viola os mais elementares princípios humanitários.
Para um cristão, é natural que a verdade histórica sobre a morte de Jesus de Nazaré, decerto a mais importante da história de toda a humanidade, seja ainda hoje recordada e celebrada. Mas Joseph Weiler não explicou por que razão, dois milénios volvidos sobre esse julgamento e essa morte, estes factos, de cuja historicidade ninguém seriamente duvida, provocam as mais apaixonadas discussões e polémicas entre os não cristãos como, por exemplo, ele próprio. Na realidade, o nome de Cristo ainda hoje suscita enormes paixões e ódios intensos. Talvez porque, mesmo os que o negam não conseguem explicar por que razão, dois mil anos depois, ainda se fala tanto de Jesus de Nazaré… Com efeito, se tivesse sido apenas um mero carpinteiro de uma obscura povoação da Galileia, como compreender a incrível repercussão da sua vida e morte?!

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