A minha Páscoa: de Babel ao Pentecostes

PAULO RANGEL Público 29/03/2016 - 07:32
  1. A semana que passou e a que agora passa, por razões que não vêm ao caso, fizeram acudir-me à memória as minhas férias escolares, as férias de há quarenta anos. As férias da Páscoa tal como as do Natal eram sempre passadas em casa, por entre a nossa casa, a de amigos e a de vizinhos. E numas ou noutras, as da Páscoa ou as do Natal, já não sei dizer bem – o mais provável é que fosse em ambas –, havia sempre tempo para passar os olhos por um álbum que dava pelo nome de Grande Bíblia Ilustrada ou qualquer coisa aproximada. Por vezes, quando calcorreio livrarias de marca, destas muito estilizadas, de oferta colorida, digital e escassa, típicas das franquias de centro comercial, suspeito ver esse livro ou algum dos seus sucessores ou sucedâneos algures no escaparate. A verdade é que para uma criança numa família católica dos anos 70, os tempos de Páscoa e de Natal eram tempos fortes e sagrados, mais no sentido mítico e mágico de Mircea Eliade do que no sentido austero e tradicional, quase eclesiástico, que por aí tão displicentemente se supõe ser os das ditas famílias católicas de então. Foi nesse álbum, de imagens grandes e letras gordas – algures entre o texto corrido e a banda desenhada – que, me recordo pela primeira vez, de ver e de ouvir falar de Sansão e Dalila, do grande Nabucodonosor, da adoração dos Bezerros de Ouro, das histórias da Babilónia, de Saúl e da funda David contra Golias, da Arca de Noé, de Dario e Daniel e a cova dos leões, dos Persas, de Jonas e da Baleia, da sabedoria de Salomão e do episódio das duas mães, do fratricídio entre Caim e Abel. Estava tudo lá. Foi tudo aí.
  2. Curiosamente, a imagem mais forte que me ficou desse e de um outro livro aparentado que andava lá por casa – não sei mesmo se não seria a imagem da capa de algum deles – foi a Torre de Babel. Uma torre belíssima, de ampla base e grande altura, toda em pedra algures entre o castanho e o dourado, muito trabalhada, de formato piramidal, a furar todas as nuvens e a romper mesmo o céu – seguindo de perto as indicações da pintura de Brueghel. Na cúpula, uns magros andares redondos estavam incompletos e ameaçavam ruína, já indiciando a fúria e ira divina provocadas por um alegado atrevimento humano. E os sucessivos andares, dispostos como se de um bolo de noiva se cuidasse, estavam repletos de gente de todas as raças, feições e compleições, vestida dos modos mais díspares, correndo e esbracejando, dando a sensação de desnorte, desorientação e desentendimento. Era essa – e é ainda – a minha Torre de Babel. De pequeno, ficara-me a ideia de que Deus criou o mundo com uma língua única, comum a todos os humanos. O versículo 1 do Capítulo 11 do Livro do Génesis não pode ser mais lapidar: “E era toda a terra de uma mesma língua e de uma mesma fala”. A língua única – que eu suspeitava que fosse mais o esperanto ou o latim do que inglês – deveria ter sido uma das coisas boas que Deus criou. Na verdade, toda a narração da criação, logo nos capítulos I e II do Génesis, está pontificada pelo inciso “e viu Deus que era bom.” A fala única – embora não coubesse nessa descrição inicial – seria decerto uma decorrência sua e, por isso, uma das coisas boas herdadas dos tempos da criação e não tocada pela expulsão imposta a Adão e Eva.
  3. O episódio da Torre de Babel, geralmente visto como uma alegoria da soberba humana, que quer comparar-se à grandeza divina, era, apesar de tudo, um sinal de arrependimento divino. Ou então pior ainda, mas mais provável, um castigo divino. Nuns estreitos versículos, que nem sequer têm correspondência na mitologia babilónica – embora apareçam em narrativas da mitologia suméria e tenham longos desenvolvimentos e versões na tradição de escrita do judaísmo e do Alcorão –, Deus aparta os seres humanos uns dos outros, fazendo-os falar línguas diversas e espalhando-os pelos confins da terra. Afinal, pensei eu, Deus viu que não era bom os humanos entenderem-se facilmente entre si, que isso tinha perigos e riscos, os expunha a tentações e o melhor era dificultar o entendimento e a compreensão.
  4. Há poucos anos, mesmo há poucos, com o meu autodidactismo bíblico, de vezo mais protestante que católico e com aquela liberdade que só a ignorância licencia, dei-me conta de que o Pentecostes cristão era – para usar uma linguagem cara à política portuguesa dos últimos tempos – uma reversão da Torre de Babel. O Pentecostes, a experiência da descida do Espírito Santo sobre os apóstolos em forma de línguas de fogo, cinquenta dias depois da ressurreição de Jesus, era a “contra-Babel” do Novo Testamento. Havendo em Jerusalém judeus vindos de todo o mundo – da Mesopotâmia ou de Cirene, da Frígia, do Egipto ou da Capadócia – e havendo medos, cretenses, partos e árabes, todos conseguiam entender e compreender o que os apóstolos diziam. O Espírito, diz-se nos Actos dos Apóstolos, capítulo II, versículos, 4,6 e 8, capacitou-os para falar línguas. Mas, surpresa das surpresas, não se deu ali a inversão da multitude da Torre de Babel, passando todos a ouvir e a falar a mesma língua. Não, no Pentecostes, Deus não quis voltar ao paradigma anterior a Babel em que os humanos falavam e entendiam uma única linguagem. Naquele dia de revelação dos seguidores de Cristo, todos compreendiam os Apóstolos, mas cada um ouvia-os na sua língua, na sua língua própria. Todos compreendiam a mensagem divina, mas ela revelou-se a cada um na sua língua própria, na sua cultura própria, na sua especificidade própria, na sua diversidade e particularidade.
  5. No fundo, Deus viu que afinal a existência da diversidade – criada num capricho antropomórfico de reacção à soberba humana – era afinal boa e profícua. E quando tratou de fazer uma nova aliança, não quis regressar ao mundo monolítico e redutor da língua única. Eis um pensamento que dominou a minha Páscoa. Que vale muito para a Igreja e para os problemas que nos afligem. E que vale muito para a Europa e para os problemas que nos torturam. 

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