Dignidade de cadáver

João César das Neves
DN 20160310

Em todas as épocas existe uma pequena percentagem de pessoas que pensa que a morte é o nada. A esmagadora maioria da humanidade sempre considerou que o óbito não é o fim, acreditando numa existência posterior. É estranho que seja precisamente aquele grupo que considera a morte sem sentido a promover a eutanásia.

No mundo apenas uma pequena percentagem goza de cuidados de saúde. A maior parte da humanidade, apesar dos avanços, enfrenta a doença e a morte com poucos e maus tratamentos. É estranho que sejam aqueles que desfrutam de um sistema que permite alternativas dignas de cuidados a defender o assassínio como via para a dignidade.
A questão do fim permanece um mistério, o supremo mistério diante do qual quase tudo se cala. Por mais elevadas que sejam a vida, realizações, sentenças e influências, no momento supremo todos os seres humanos se encontram na condição de um verme, mais corruptível do que uma pedra. Se isto é verdade sempre, as situações extremas, doenças incapacitantes ou sofrimentos atrozes, acrescentam ao mistério escolhas e dimensões muito mais dolorosas e insondáveis. Nesses casos, a única coisa que não existe são respostas simples e genéricas.
Em campo tão profundo e complexo, em que se jogam os termos decisivos da nossa natureza, exige-se suprema seriedade, compaixão e respeito. Na busca do equilíbrio entre os males do suicídio/assassínio e excesso terapêutico, o principal agente tem de ser a consciência dos envolvidos. Outros mecanismos são demasiados rudes. Por isso, à lei nacional exige-se que defenda os direitos humanos e a posição dos mais fracos.
Os intelectuais portugueses que recentemente perturbaram a já turbulenta situação política nada trouxeram de novo a esse mistério nem aos dramas extremos. Preferiram apresentar dogmas simplistas e displicentes, que passam ao lado do essencial. A realidade angustiante serve de joguete retórico a quem pretende acrescentar mais um troféu à vitrine das questões fracturantes
A pobreza de argumentos é, como sempre, confrangedora. Afirmar que a morte é caminho para a dignidade equivale a dizer que a ditadura é necessária para proteger o povo. Defender a liberalização porque a eutanásia é já corrente nos hospitais portugueses não é diferente de recomendar autorização para lavagem de dinheiro ou evasão fiscal, muito mais comuns.
Ressurge também a habitual hipocrisia. Tal como na magna campanha a favor do aborto, dizem pretender apenas "descriminalizar", quando a verdadeira finalidade é banalizar e promover. Assim, alegadamente, a ânsia limita-se a tirar dos calabouços as almas compassivas que ajudaram a matar o próximo, algo com que tenderíamos a concordar. O facto de não estar ninguém nesses calabouços não os incomoda porque, do alto da sábia ideologia, nunca permitem aos factos concretos incomodar os seus raciocínios. Por outro lado, asseguram a finalidade suprema de defender a dignidade, algo consensual, sem nunca dizer que a dignidade que promovem é a do túmulo. Entretanto o direito à vida fica subordinado a falácias.
Realmente, estas posições não surpreendem. Se esses activistas consideram o homicídio de um embrião, que tem toda a vida por diante, não só razoável, aceitável, admissível, mas um direito que o Estado deve tolerar, permitir, e até subsidiar e promover, como nos pode admirar que acelerem a morte dos moribundos? No meio da nebulosidade ideológica, o desprezo pela vida dos doentes terminais até fica compreensível, se não defendem a existência de alguém cheio de vida, saúde e dignidade, só por não ser desejado pelos pais, aqueles que mais o deveriam amar. Aberta a porta do aborto, tudo fica possível. Afinal, se algo espanta nesta recente iniciativa a favor da eutanásia é o comedimento, pois, apesar de tudo, ainda mostra alguma vergonha.
O que subjaz a todas estas iniciativas é aquela atitude que o Papa Francisco costuma referir como "cultura do descarte". Este conceito genial permite englobar o essencial de muitos problemas sociais, do desemprego ao aborto, passando pela pobreza, discriminação, abandono de idosos, eutanásia de doentes, suicídio de deficientes e outras formas contemporâneas de exclusão.
Esta cultura gera um outro moribundo, evidente neste debate revelador do estado comatoso de uma parte da intelectualidade portuguesa. Internada nos cuidados intensivos, sustenta-se apenas ligada a máquinas partidárias, alimentada a soro de ideologias importadas e ideias feitas. Não sabemos se conseguirá sobreviver, mas certamente já perdeu a dignidade.

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