O SOM DO SILÊNCIO

D. MANUEL CLEMENTE

HOMILIA NA MISSA EXEQUIAL DO PROF. JOÃO LOBO ANTUNES   29.10.16


Foi no passado dia 20 de junho, uma segunda-feira, a meio da tarde. O Prof. Lobo Antunes veio falar comigo à Casa Patriarcal. Trazia uma ideia, a de retomarmos as nossas conversas públicas, como já o fizéramos anos atrás, televisivamente. Não demorámos muito a concordar no assunto, para estar à altura da circunstância, da sua circunstância antes de mais. Desta vez seria a própria vida, com tudo o que ela significa em nós e nos outros, como a sentimos e consentimos. Ele estava absolutamente interessado nisso, e com urgência o estava. 
Guardo muito boa lembrança das conversas que tivemos, as televisivas e outras. Por isso imediatamente combinámos o que iríamos fazer. Seriam quatro conversas, duas em setembro e outras duas em outubro. A última teria sido a 17 deste mês, todas num grande auditório de Lisboa. Até escolhemos a imagem do cartaz. Primeiro pensámos no Semeador de Van Gogh. Porque assim olhava a vida, como sementeira de si próprio no vasto campo do mundo. Depois escolhemos outra, que acabou por não ser… A imagem não, mas a sementeira sim. A sua própria. 
Porque o tema das conversas, com grande anuência sua, seria a própria vida – “A vida conversada”. Percebi que só assim lhe interessava, a vida global e densa onde tudo pode entrar, nós e os outros, como nos vamos interrogando e sabendo.Porque ele estava ainda cheio de vida, mesmo num corpo enfermo. Da sua própria vida, do muito que vivera e convivera, estudara e ensinara, viajara e aprendera. E da vida de tantos, tantos outros, que soubera curar em muitos casos e que soubera acompanhar em muitos outros. Cheio de vida e com muita vontade de a contar, de a compartilhar, de a conversar e semear.
Mas chegou agosto e escreveu-me: «Infelizmente o meu estado de saúde não permite que leve a cabo aquele projeto que tanto desejava. Terão que ficar, pois, sem efeito os nossos diálogos…». 
Com os votos de recuperação, manifestei-lhe inteira disposição para o que entendesse, quando ele quisesse e pudesse. Para muitos, senão todos os que aqui estamos agora, é admissível ou mesmo certo que a conversa continue e prossiga, como realmente está a acontecer. Pelo que me disse desde que a doença se declarou, concluo que ele o admitiria também.

De “conversa” e “vida conversada” nos falaram os trechos bíblicos que há pouco escutámos. Falaram primeiro do nosso interesse, incontido e vital, como no Salmo 63: «Senhor, sois o meu Deus: desde a aurora vos procuro…». 
Desde a aurora, desde o princípio que somos, desde o sempre que herdámos, somos todos a procura, em grito ou surdina. Os dias alimentam-se da busca, outro modo de dizer a esperança. Todas as formas da arte, todas as indagações da ciência, todas as realizações da prática – e tanto disto aconteceu em Lobo Antunes – são outro modo de entoar o Salmo, como quem adivinha uma resposta que há de chegar inteira e autêntica, por isso de pessoa a pessoa, por isso de Deus ao homem.  E os trechos falaram da resposta de Deus, reconhecida na vida de Jesus, Verbo incarnado. Assim a acolhiam os primeiros discípulos, como ouvimos nos Atos dos Apóstolos: «Deus enviou a sua palavra aos filhos de Israel, anunciando a paz por Jesus Cristo...».
A paz por Jesus Cristo, porque assim e finalmente a experimentavam. Não como especulação mas como vida convivida, do nascer ao crescer, do crescer ao morrer e reviver, como com Jesus aconteceu por nós e para nós. Quem assim se sente acompanhado, sabe finalmente o que é paz. Venha o que vier, nunca está só, antes correspondido. Resposta que não nos larga mais, no próprio dizer-se de Jesus: «E a vontade d’Aquele que me enviou é esta: que eu não perca nenhum dos que me deu, mas os ressuscite no último dia…» - assim ouvimos no Evangelho de João.  
E nem Jesus perdeu Lobo Antunes nem Lobo Antunes perdeu Jesus. Entre os dois a conversa continua, como cremos que continua. Este diálogo – o seu deles – não ficou decerto sem efeito.

Muitos dos que o conheceram ou simplesmente contactaram aludem ao seu porte, entre a elegância e a reserva, a contenção. O que tinha a dizer, dizia. Mas dizia quando entendia dizer. Por isso a palavra não era ociosa, como o gesto não era só por ser. Na linguagem corrente, era uma figura “marcante” – que marcou os amigos, os alunos, nós todos. Como quem está atento ao de fora, mas em geral fala de dentro.
Chama-se a isso “cultura”, cultivo interior das coisas que acontecem de fora para dentro, quando lhes damos tempo e espaço para nos semearem a alma. Vão germinando e depois produzem flor e fruto. Acreditamos que o que nos foi dito em Jesus manifestou “naquele tempo” o que demora todo o tempo e além dele.  
Desde a sua juventude estudiosa, Lobo Antunes permaneceu reflexivo e exato. Também a sua voz amadurecia no silêncio. Por isso creio que agora conhece ainda mais a linguagem divina, de antes e depois de qualquer palavra sonora. Como ele próprio escreveu, sendo sua a frase: «Ouvimos novamente as palavras que deveríamos ter contido ou então, pelo contrário, as que ficaram por dizer» (Ouvir com outros olhos, 2015). É um verdadeiro purgatório da expressão, finalmente pura.
Da última mensagem que me escreveu retiro a frase: «As coisas verdadeiramente importantes dizem-se com o silêncio».  Na importância desta hora, que para ele já é eterna, continua connosco, como acreditamos que continua em Cristo, por isso mesmo rezando. O silêncio é o seu som. E assim o escutamos também.

Lisboa, 29 de outubro de 2016

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