Não gosto que me tomem por parvo

Observador 13/4/2016

O problema com Diogo Lacerda Machado não é apenas formal: é o de uma grave incompatibilidade. E o problema com aquilo que Costa diz e faz é pior: revela alguém que se vê como novo dono-disto-tudo.

1. Por vezes agem como se nos tomassem a todos por burros, ignorantes, porventura analfabetos. E que por isso podem dizer não importa o quê, fazer não importa o quê e tratar o país como quem trata da sua quinta privativa, sem necessidade de dar explicações ou cumprir regras.
Um episódio destes dias – a discussão em torno do papel desempenhado por Diogo Lacerda Machado como “negociador especial” de António Costa – é bem revelador de como há hábitos que não se perdem, e um desses hábitos é o de pensar que o primeiro-ministro é uma espécie de dono-disto-tudo que põe e dispõe. É verdadeiramente extraordinária a resposta que o chefe do Governo deu na sua entrevista do DN e TSF quando lhe perguntaram como explicava a presença desse advogado nas negociações da TAP, dos lesados do BES e até nas do BPI. A primeira resposta foi a mais espontânea, porventura mais sentida e verdadeira: “Vamos lá a ver, o Diogo Lacerda Machado é o meu melhor amigo há muitos anos, temos uma relação muito próxima”.
Como? O primeiro-ministro acha que uma relação de amizade é justificação para confiar a alguém a representação, mesmo que informal, do Estado? Ser o melhor amigo não devia até funcionar como um dissuasor, tal como funcionaria ser irmão ou primo e, por isso, ter também “uma relação muito próxima”?
Aparentemente António Costa entende que até pode estabelecer este tipo de relações informais sem que elas se submetam às regras da administração pública. “Olhe, acabámos por celebrar um contrato, porque as pessoas achavam que o facto de não haver nenhuma despesa do Estado…”, disse quando os entrevistadores lhe chamaram a atenção para a estranheza da situação. Ou seja, há alguém que em nome do primeiro-ministro negoceia com os donos da TAP e lhes dá contrapartidas (que desconhecemos) fazendo-o apenas na condição de “maior amigo”. Esse mesmo alguém também vai negociar com os lesados do BES, podendo forçar uma solução que nos venha a custar muitos milhões de euros (alguém pagará a factura, porque haverá sempre uma factura a pagar, e não creio que seja o dr. Salgado), e o PM acha que não é necessário um contrato por assim não se gasta dinheiro.
Mas há mais e mais grave.
Como se tudo isso não fosse bizarro, António Costa ainda trata com ar de enfado os que o questionam, como se esse não fosse o dever os jornalistas e a obrigação da oposição no Parlamento. Afinal, porque é que o enviado de Costa às negociações da TAP é alguém que, no passado, esteve envolvido com uma empresa, a Reditus de Miguel Paes do Amaral, interessada na privatização da companhia? E não é estranho que, no meio deste processo, tenham surgido uns accionistas chineses quando esse mesmo advogado é administrador de uma empresa, a Geocapital, que pertence, entre outros, a Stanley Ho e tem sede em Macau? Pior ainda: que pensar do facto de a mesma Geocapital e Stanley Ho aparecerem no mais nebuloso – e imensamente ruinoso – dos negócios da TAP, o da compra da operação de manutenção da Varig?
Se tudo isto não configura uma situação de grave incompatibilidade, então é porque andamos todos a fazer de anjinhos.
Na verdade, o que é que sabemos, todo este tempo passado, dos termos da “negociação” da TAP? Nada. Ou melhor, alguma coisa: sabemos que o sócio português, Humberto Pedrosa, ficou mais dois anos com a concessão do Metro do Porto por ajuste directo. Estranho, não é?
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2. Mas se neste caso o que vemos é alguém habituado a tratar os assuntos públicos com a arrogância própria de quem não gosta de prestar contas, a mesma entrevista é também notável pela desfaçatez de algumas das respostas. Já muitos sublinharam, e com toda a razão, o descaramento com que diz que os avisos deixados por Mario Draghi no Conselho de Estado no que se refere à necessidade de Portugal realizar reformas: “cada país precisa das suas próprias reformas” e “grande parte das mencionadas pelo presidente Draghi dizem certamente respeito a países que não Portugal”. Como se sabe, o presidente do BCE foi falar aos conselheiros de Estado sobre Malta ou o Burkina Faso, não sobre o nosso país onde, de acordo com António Costa, tudo está bem e não há nada que tenhamos de reformar.
Mas se este despautério apenas ridiculariza quem assim responde a uma pergunta de jornalistas, já a forma como justifica não necessitarmos de reformas é novo sinal de que nos toma por tontos. Citemos pois mais uma passagem da sua entrevista: “O relatório [Comissão Europeia fez sobre os desequilíbrios estruturais do país] é, aliás, bastante surpreendente e contrastante com muitas das ideias feitas que tendem a ser repetidas mesmo quando a realidade não as confirma. Por exemplo, um dos dados interessantes que consta do relatório da Comissão Europeia é chamar a atenção [para o facto de] que a famosa liberalização do mercado de trabalho não teve esse efeito fantástico de que tantas vezes se fala”. Mais: “Por cá nunca houve um problema de legislação do trabalho que tivesse impedido a Autoeuropa de ser a fábrica mais produtiva do Grupo Volkswagen”.
Como nem todos os cidadãos têm todos os relatórios da Comissão Europeia à mão e ainda menos conhecem a realidade da Autoeuropa, António Costa julga que pode seguir em frente, impante e triunfante, fiel à sua cruzada de reversões e destruição das poucas reformas que se foram fazendo nos últimos anos. Mas não. Hoje é fácil aceder a todos os relatórios que quisermos, pelo que o relatório da Comissão Europeia está à distância de um clique, uma distância suficientemente curta para se perceber que o que lá vem escrito é exactamente o contrário do referido pelo PM. Aí, na página 40, escreve-se taxativamente que “Labour market reforms are expected to have a strong positive impact on the Portuguese economy” (“As reformas no mercado de trabalho deverão ter um forte impacto positivo na economia portuguesa”), especificando-se de seguida que essas reformas se iniciaram em 2011 e 2012 e já provaram ter ajudado à recuperação do emprego ocorrida a partir de meados de 2013. Ajudaram também a “reduzir a segmentação do mercado de trabalho” entre trabalhadores com vínculo e trabalhadores com contratos a prazo, uma segmentação que, seguramente numa outra encarnação, era a principal preocupação de um economista especializado em mercado de trabalho que dava pelo nome de Mário Centeno.
(No mesmo documento faz-se uma análise mais detalhada da recuperação do mercado de trabalho a partir de 2013, entre as páginas 22 e 36, mas o registo da análise é o mesmo: “Although labour market segmentation remains a challenge, recent increases in employment were concentrated in permanent contracts, suggesting that previous reforms of employment protection legislation helped reduce the bias towards temporary employment.”)
Não sei se António Costa não leu o relatório da Comissão, se não entendeu o que lá vem escrito ou se pura e simplesmente resolveu virar a verdade de pernas para o ar, pelo que deixo aos leitores a possibilidade de escolherem entre qual destas explicações para o dislate lhe parece a mais benigna.
Também sobre a Autoeuropa convém referir que as soluções aí encontradas por negociação com os trabalhadores violavam a legislação laboral em vigor até 2011, mas que as autoridades inspectivas sempre acharam ser mais prudente olhar para outro lado não fosse a fábrica ir-se embora. Felizmente não foi, mas é bom saber que isso só foi possível fazendo uso de uma velha especialidade portuguesa: contornar a lei.
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3. Estávamos todos ainda mal refeitos desta entrevista de fim-de-semana e eis que nos surge nas televisões António Costa sorridente a assinar um papel com Alexis Tsipras. Ou melhor, uma “declaração conjunta” na qual Portugal e a Grécia se apresentam como vítimas das políticas de austeridade e ambos proclamam o seu falhanço. “As Prime Ministers of two countries with a similar policy experience in the context of their respective adjustment programs” lê-se a certa altura e quase não se acredita. Isto antes de se acrescentar que “we can safely confirm that austerity alone is failing in its own terms and has had a social and economic impact that has gone far from what was anticipated.”
Durante anos, desde tempos tão recuados como os do primeiro-ministro José Sócrates, que Portugal sempre procurou distanciar-se da Grécia e do fracasso grego. Fê-lo com êxito, porque o fez com sangue, suor e lágrimas, mas fê-lo de forma a só necessitar de um resgate (a Grécia vai no terceiro) e a ter cruzado o Rubicão, ao retomar o crescimento e a criação de emprego há já dois anos. Portugal procurou sempre ser como a Irlanda, não como a Grécia, até esta nefasta segunda-feira em que um seu primeiro-ministro decide, inopinadamente e sem antes consultar o Parlamento, assinar uma declaração conjunta que o une ao destino do país que falhou todas as reformas e todas as metas.
Uma coisa é procurar ajudar a Grécia nas negociações em que está de novo envolvida, pois como se esperava não cumpriu praticamente nada daquilo com que se comprometeu há um ano. Outra coisa bem diferente é ligar o nosso destino ao fracasso grego, e foi isso mesmo que a imprensa internacional, como o Financial Times, não deixou de notar, apresentando o documento como fruto do “leftwing duo of António Costa and Alexis Tsipras”. Não de facto há nada como saber escolher as companhias para que os bons entendedores compreendam o que elas nos revelam.
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4. Há companhias que não desejamos. Amizades de que desconfiamos. E conversas fiadas em que não embarcamos. E se isto é aquilo a que alguns chamam “fazer política” como um “grande senhor”, então estamos conversados. Porque não há forma de ter mais conversa.

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