A prosperidade é um estado de espírito
Alberto Gonçalves
DN 20160424
Por motivos que escapam ao comum mortal mas não ao olhar presciente do dr. Costa, a "Europa" naturalmente deseja que os portugueses vivam na mais abjecta miséria. E quem diz a "Europa" diz a Comissão Europeia, o FMI, a Alemanha, Pedro Passos Coelho, o senhor da confeitaria aqui ao lado e toda a súcia de comentadores ao serviço do imperialismo neoliberal. Alimentada por pura maldade, essa gente dá-se a uma impensável trabalheira apenas para subjugar-nos, humilhar-nos e forçar-nos a remunerações incompatíveis com as escaladas dos combustíveis que o governo, para nosso privilégio, decreta a cada semana. Por sorte, e ao contrário de anteriores governantes que conviviam - e colaboravam - impecavelmente com isso, o dr. Costa "não aceita" viver num "país de pobreza". E se o dr. Costa não aceita, postura com credibilidade acrescida por ter sido assumida em patuscada do PS com cantilenas de Carlos Alberto Moniz, não se imagina qual a legitimidade de uns burocratas em Bruxelas para contrariá-lo. Que se saiba, não lhes devemos nada.
Fica então decidido que isto da penúria depende totalmente da vontade dos titulares do poder. Se estes forem mesquinhos, o povo anda de mão estendida. Se forem socialistas, para cúmulo sob a vibrante orientação de dois partidos comunistas, o povo nem sabe o que fazer ao dinheiro. Ou sabe?
Por muito que me custe dizê-lo, há uma ligeiríssima mácula no impecável raciocínio do dr. Costa. Devo lembrar que a referida discórdia com a CE prende-se com a subida do salário mínimo, que em Janeiro trepou vertiginosamente dos 505 para os 530 euros. Embora possa ser impressão minha, mal habituado devido a tantos fins-de-semana em iates ao largo de Capri, julgo que um acréscimo de 25 euros não é susceptível de transformar os cidadãos em outdoors da abundância. Para benesses assim, era preferível estar quieto, nos salários, nos aumentos de produtos básicos ou acessórios e nos impostos em que o dr. Costa já jurou não bulir (garantia de que teremos agravamento à porta). Se a ideia é resgatar a populaça da tirania dos rendimentos pelintras, porque não se arremessa o salário mínimo para valores de, por exemplo, 1200 euros? Ou 3000? Ou 5347 e não se volta a falar nisso?
Não me venham dizer que é por causa do alegado impacto no desemprego, e sobretudo no desemprego de longa duração e dos pouco qualificados. Montantes à parte, semelhante patranha é justamente o "argumento" da CE, depressa ridicularizado pelas pensadoras à disposição do BE. Se metade das gémeas Mortágua demonstrou cientificamente a inexistência de relação entre o salário mínimo e o emprego, o caso declara-se encerrado. Os tratantes às ordens do grande capital tentaram impingir-nos a tese absurda de que convém ao salário mínimo, ou exactamente aos aumentos do salário mínimo, estar dependente da produtividade, da inflação e de palermices do género. Azar deles: saiu-lhes pela frente o fruto de uma educação às mãos do prof. Boaventura, o competente sr. Jerónimo, o engraçado "ministro" Centeno e, claro, o dr. Costa, "príncipe da política" segundo um dos diversos militantes do PSD que fazem campanha pelo PS.
Arrasado o estratagema dos déspotas, resta ao governo perder os últimos vestígios de timidez, cortar de vez as amarras da opressão e vincular os ordenados dos portugueses ao único critério realmente relevante: o parecer da maioria de esquerda. Parece-me excelente. O tempo novo é o tempo de elevar Portugal aos padrões de vida das nações admiráveis e admiradas pelo séquito do dr. Costa, tipo Venezuela e Cuba, onde os salários mínimos rondam, se bem me recordo, os 10 000 euros mensais. Ou se calhar os 10 euros, que para economistas de gabarito os zeros à direita não pesam. O que hoje pesa imenso, pelo menos a avaliar pela espectacular situação caseira, são os zeros à esquerda. Força, Portugal, e o último a sair que apague a luz - se o dr. Costa não a cortar primeiro, como o inspirador Maduro de Caracas.
Sexta-feira, 22 de Abril
Passar cartão
Não é o PCP que tem lampejos de lucidez: é o Bloco de Esquerda que vive em estado de alucinação perpétua. O episódio do "cartão de cidadania", que os comunistas dissimulados queriam impor e os comunistas assumidos vetaram, é apenas um exemplo. E nem sequer um exemplo original: por todo o Ocidente e arredores há "comissões", "observatórios" e centros de ócio similares empenhados na erradicação da discriminação de género através do massacre da gramática. Os primitivos, que pronunciavam "chuva" e aguardavam o aguaceiro, acreditavam que a linguagem determinava a realidade. O BE, sem hesitações ou subtilezas, também acredita, e é preciso um partido que acredita na democracia norte-coreana para moderar-lhes a toleima.
Ocasionalmente, critica-se os nossos humoristas por pouparem o BE à sátira. É possível que não se trate de uma questão ideológica, mas do simples facto de o BE constituir uma anedota em si mesmo. Eu próprio iniciei este texto decidido a aliviar-me de duas ou três graçolas alusivas e desisti entretanto. Cada frase, atitude ou proposta do BE já é uma graçola perfeita e involuntariamente (?) elaborada. E a melhor de todas é a circunstância de tamanha homenagem ao delírio ver-se hoje representada sobretudo por senhoras. Se a ideia é combater o enxovalho e a subalternização das mulheres, não seria mal pensado começar-se por aí.
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