Valha-nos nossa senhora da eutanásia!
P. Gonçalo Portocarrero de Almada
Observador 16/4/2016
A eutanásia está muito enraizada na cultura portuguesa. Não como sinónimo de homicídio autorizado, mas no seu sentido etimológico, ou seja, duma ‘boa morte’ tal como a concebe e deseja o cristianismo
É conhecida a história do embaixador português em Berlim que, no fim da segunda Guerra Mundial, ao ser a capital alemã ocupada pelas forças aliadas, decidiu abandonar, sem autorização, o seu posto e regressar a Lisboa. Quando se foi apresentar ao seu superior hierárquico, assim respondeu este a quem lhe anunciou a inesperada chegada do diplomata:
– Não, o nosso embaixador na Alemanha está em Berlim.
Como lhe tivesse sido confirmada a presença, na capital portuguesa, do chefe da missão acreditada junto do governo alemão, o dito governante retorquiu:
– Então, se está em Lisboa, já não é o nosso embaixador em Berlim!
O episódio da demissão fulminante do precipitado diplomata serve para recordar que, muito embora possa haver alguns pretensos cristãos que defendam a eutanásia, na realidade, se o fazem sabendo e querendo contradizer expressamente o Evangelho da Vida, segundo uma muito feliz expressão de São João Paulo II, é óbvio que, por força dessa sua defesa da ‘morte assistida’, negaram a fé em que diziam crer.
De facto, ninguém pode ser católico à margem da Igreja, como também ninguém pode ser embaixador de Portugal à revelia do governo. Católico não é quem diz sê-lo, mas quem objectivamente reúne as condições necessárias para poder ser como tal reconhecido pela competente autoridade eclesial, nomeadamente por ser baptizado, professar as verdades da fé cristã e propor-se viver de acordo com os seus princípios morais, por muitos e graves que sejam os seus pecados. Com efeito, não se pode ser católico e ser a favor, por exemplo, do politeísmo, ou do adultério, ou da pedofilia, ou da corrupção, ou da idolatria, ou da reencarnação, ou do aborto, ou do nazismo, ou da ideologia de género, ou do comunismo, ou do racismo, ou da eutanásia, etc.
Se a eutanásia, enquanto prática que contradiz expressamente o quinto mandamento da Lei de Deus, é necessariamente anticristã, também é verdade que existe, por assim dizer, uma eutanásia cristã. Não na acepção de um homicídio autorizado, ou consentido, mas no sentido etimológico, ou seja, de uma ‘boa morte’ segundo a doutrina e a prática da Igreja. Escusado será dizer que, para um cristão, uma ‘boa morte’ nunca é provocada, nem antecipada, mas uma morte natural e, se possível, abençoada.
A eutanásia, na sua acepção de boa morte, está muito presente na cultura cristã do povo português. Segundo o Padre Dr. Jacinto dos Reis, especialista em mariologia, há no nosso país uma grande devoção a Nossa Senhora da Boa Morte, ou seja, da eutanásia. Com efeito, são numerosas as imagens de Nossa Senhora da Boa Morte veneradas em muitas igrejas e capelas portuguesas. Só na arquidiocese de Braga elevam-se a 24, contando-se 13 altares e 9 capelas!
Enquanto alguns pagãos querem, à hora da morte, um médico que os mate e assim apresse a agonia final, os cristãos esperam ter à sua cabeceira, nessa derradeira hora, familiares e irmãos na fé que os assistam com a sua caridade, padres que os confortem espiritualmente e profissionais de saúde que os ajudem a chegar até ao fim da etapa terrena da sua vida, sem abreviá-la por falsa compaixão – como muito bem disse o Prof. Daniel Serrão, a morte por compaixão é a morte da compaixão – mas também sem que a prolonguem artificialmente, por via da obstinação terapêutica.
A verdadeira eutanásia é, para um cristão, uma morte na graça de Deus e no amor da sua família e dos seus irmãos na fé e não uma agonia sem dor, embora sejam louváveis os esforços nesse sentido, desde que não atentem contra a vida, nem a dignidade humana. A ‘boa morte’ cristã, mesmo que dolorosa, é sempre vivida, não na tristeza da desgraça, mas na alegria da graça e na certeza de se estar prestes a alcançar, pela infinita misericórdia de Deus, uma felicidade sem fim. Valha-nos, pois, nessa hora, Nossa Senhora da Boa Morte, ou seja, da eutanásia!
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P.S. Luís Aguiar-Conraria, meu ilustre colega como cronista do Observador, concedeu-me a honra de um seu comentário à minha anterior crónica, “Deus é feminista!”, que teve a generosidade de considerar um “artigo muito bem humorado”. Para o efeito, não só cita Mahmoud Ahmadinejah como também apresenta um gráfico muito bonito que, segundo ele, “mostra” que “quanto mais pessoas levam a religião a sério, maior a desigualdade de género” (sic). Em abono desta tese científica, tenho a dizer que a D. Aurora, que era fervorosa adepta da ideologia de género ao começar a rezar o terço; no fim do segundo mistério já se considerava superior ao sacristão; e, no fim da reza, tão partidária da desigualdade de género que desancou o marido, o Arlindo, quando o viu chegar da taberna, onde ele tinha ido praticar as suas devoções (ambos são muito piedosos, diga-se de passagem, mas cada um à sua maneira). Com este meu modesto contributo, corrobora-se cientificamente que, com efeito, “a mais religiosidade, mais desigualdade de género”. Quoad erat demonstrandum.
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