O espirro Trump

João César das Neves
DN 2016.04.14
Donald Trump não é uma doença; é um sintoma. O vício desse fenómeno, como de Lenine, Mussolini, Hitler, Fidel ou Berlusconi, não está tanto na maldade da personagem. Vilões sempre houve, mas só têm efeitos na sociedade quando esta lho permite. É uma causa profunda que gera a oportunidade.
Há décadas que Trump domina o vasto público do telelixo, usando manchetes sensacionalistas para ganhar fama e dinheiro. Agora tenta o poder. Mas a questão de fundo não é quem é manipulado e para quê. A doença é o telelixo. A moléstia está no Partido Republicano e nos EUA, que o milionário aproveita. Aliás, apesar dos traços específicos, outros países sofrem da mesma epidemia, como mostram Marine Le Pen, Beppe Grillo, Pablo Iglesias, Alexis Tsipras e até Vladimir Putin. Nem só a América espirra.
Quem adoece toma analgésicos para dominar os sintomas. A maneira de lidar com o fenómeno não é agredir ou insultar, o que só reforça o movimento. Uma ameaça como a de Trump é vencida apenas com humilhação nas urnas. Isso é provável, pois, por enquanto, a doença de que ele é o sintoma atinge mais os divididos Republicanos do que o resto do país (afinal Bernie Sanders não convence os democratas). No entanto, um analgésico nunca cura. Sem tratamento o paciente ficará pior. Os eleitores de Trump não são maus. Estão zangados e com boas razões. Essa é a doença.
O mundo passa por uma colossal transformação estrutural, simultaneamente geográfica, financeira e tecnológica. As últimas décadas trouxeram mais progressos do que os séculos anteriores: da abertura geoestratégica (Rússia, China, Vietname, etc.) às novidades na comunicação (internet, telemóveis, apps, etc.), medicina (genes) e energia (petróleo e gás de xisto), passando pelos novos serviços financeiros, que reduziram o custo do capital para os pobres. Estas novidades revolucionam o planeta, mas também eliminam ou transformam inúmeras profissões, actividades, empresas e modos de vida. Como no passado, as épocas de progresso intenso são também de tumulto, desigualdade e exclusão. Esta evolução é a origem última dos nossos problemas económicos. No final, todos ficam melhor, mas no processo muitos são postos à margem e o seu descontentamento é dilacerante.
As novidades nos táxis são, entre outras, um símbolo desta magna evolução. Ninguém pode negar os espantosos ganhos em conveniência, acessibilidade, conforto e poupança das novas aplicações de partilha de transporte. Companhias como Uber, Blablacar, Carma, Lyft, Getaround e tantas outras transformam os transportes urbanos e interurbanos, reduzindo custos e aumentando rapidez e mobilidade. Mas esta espantosa inovação é terrível para os motoristas, pilar da anterior vida citadina, que se revoltam contra o inevitável. Eles enfrentam a obsolescência, como os aguadeiros, varinas, lavadeiras, trapeiros, telefonistas, dactilógrafos e tantos outros. Claro que os taxistas enfurecidos votam Donald Trump, como antes lavadeiras e aguadeiros votaram em Mussolini e Péron ou aplaudiram Lenine, Hitler e Fidel.
Isto repete-se no turismo, ensino, banca, cultura, saúde e inúmeros sectores onde as aplicações de telemóvel tudo modificam. E elas são apenas um dos múltiplos fenómenos que estão a revolucionar todos os sectores. Dos drones, robôs e veículos sem condutor aos novos poços do petróleo, da engenharia genética às redes globais de produção e novas formas de financiamento, a economia está em profunda transformação, criando impactos a todos os níveis.
Os nossos dramas são pois consequências laterais do desenvolvimento. Precisamente por isso, não existem culpados directos, porque todos participamos no processo. O truque de Trump é capitalizar o descontentamento, arremessando-o contra aqueles que se lhe opõem. Ora isso é comum a todas as forças extremistas, do Bloco de Esquerda à Frente Nacional. Todas elas, mesmo declarando-se horrorizadas com a pessoa e métodos do bilionário, seguem linhas paralelas e até lhe copiam a farsa, como no cartaz do Bloco sobre Jesus.
Não é a primeira vez que enfrentamos a situação. A experiência de há cem anos traz lições preciosas. Então as tensões sociais, extremismos políticos, reestruturações económicas, fragilidades financeiras e outras ameaças eram semelhantes. O resultado foi a catástrofe. Só nos livraremos dessas terríveis consequências se seguirmos o caminho então omitido: solidariedade, partilha e compaixão, para apoiar vítimas, combater disparidades e unir a sociedade. Precisamente o oposto do que Trump e seus clones extremistas fazem.

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