Intempestivo, pessimista, sempre radical
ANTÓNIO GUERREIRO 30/04/2016 - 22:22
Paulo Varela Gomes (1952-2016) esteve sempre em discordância com o seu tempo.
Paulo Varela Gomes (1952-2016)
Em quatro anos, publicou um livro de crónicas e quatro romances, o último dos quais, saído em Fevereiro, chama-se Passos Perdidos.
Do percurso intelectual, espiritual e ideológico de Paulo Varela Gomes, há uma regra contínua e persistente que se pode deduzir: esteve sempre em discordância com o seu tempo. E essa discordância de tempos só de maneira imperfeita se deixa adivinhar num curto apontamento biográfico que encontramos numa das suas crónicas: “Nasci tarde ou cedo de mais”. Por muito que nestas palavras soe a consciência crítica de um herói inadaptado, a verdade que elas revelam situa-se noutro lado: numa região habitada pelo intempestivo, por aquele que tem uma desconfiança insuperável no curso do mundo e fez do pessimismo um método para vislumbrar em cada caminho uma passagem pelos escombros da história. Como todo o herói intempestivo, inactual, tinha uma enorme consciência histórica e vivia em permanente necessidade de ar fresco e de espaço livre: “Faz-me falta ar condicionado e confiança no progresso”, escreveu ele numa das suas Cartas de Cá (assim se chamava a sua coluna no PÚBLICO, em 2008 e 2009), remetidas de Goa, onde foi delegado da Fundação Oriente por duas vezes: de 1996 a 1998 e de 2007 a 2009.
A discordância temporal e a tendência para entrar às arrecuas nos vários mundos que atravessou (o político, o académico, o literário), onde é hábito e quase lei seguir em frente, fizeram dele um indivíduo paradoxal, atraído por polarizações contraditórias. Por altura do lançamento de O Verão de 2012, romance que lhe conferiu publicamente o estatuto de escritor (muito embora não tenha sido a sua estreia na publicação literária), classificou-se como um reaccionário e um comunista utópico. De olhos postos noutros tempos, mas não para se evadir: “Estive no passado. E funciona”. Mas não se pense que ele revisitava o passado como um nostálgico: a sua atitude era reaccionária perante o futuro e o progresso, mas revolucionária perante o passado. Para ele, o passado era um tempo anterior à Revolução Francesa, era sobretudo o século XVIII, o seu século de eleição, que tanto frequentou nos domínios da arte, da literatura, do pensamento. Dizer-se comunista utópico era uma maneira de dizer que tinha conhecido o comunismo real e presente, mas não tinha gostado do que viu. Das inflexões extremas no seu percurso, a mais radical é provavelmente aquela que o levou do materialismo histórico à espiritualidade e à fé cristãs. Ao contrário do que se possa pensar, não foi uma conversão súbita, uma revelação da Lei às portas da morte. Paulo Varela Gomes passou por etapas de aproximação religiosa já antes de estar doente (como se pode aliás perceber em algumas das suas crónicas no PÚBLICO), mas essa experiência interior - tão livre como foi a sua heterodoxa consciência política desde que abandonou a militância – tornou-se plena nos últimos quatro anos.
O “comunista utópico”
Ingressou na luta política muito jovem, quando era ainda liceal, como militante do Partido Comunista, e teve uma fortíssima actividade no ambiente universitário, nomeadamente na Faculdade de Letras da Universidade de Lisboa, no período revolucionário, quando era estudante de História (terminou o curso em 1978). Acabou por sair do partido, mas seguiu um caminho próprio e muito singular, afastado dos discursos reactivos ou acomodados a uma nova ordem, característicos de grande parte dos dissidentes. Ainda esteve ao lado de Miguel Portas na fundação do movimento Política XXI, um dos ramos genealógicos do Bloco de Esquerda, mas a sua colaboração com o Bloco terminou cedo e foi muito fugaz.
Desde então, as suas intervenções públicas de carácter político (nos jornais, mas também em alguns programas de televisão) foram sempre solitárias e tornaram-se até, com frequência, irreconhecíveis e desarmantes para os sectores da Esquerda, comunista ou não. A linguagem política de Paulo Varela Gomes foi, nas últimas duas décadas, irredutivelmente idiomática. Era a linguagem dele e de mais ninguém: a linguagem de um “comunista utópico”. Não a utopia como projecção no futuro, mas como um despertar do passado, para a qual a ideia de progresso é o mal maior do mundo moderno. O seu idioma falava também a linguagem de uma razão nómada, às vezes próxima da libertinagem intelectual, e a certa altura fez a defesa da cultura católica contra a ascese e o puritanismo protestantes. Era a linguagem que dissolve as cristalizações ideológicas, desarma todos os clichés e destitui as formas preguiçosas de pensar. Ele, que tinha conhecido na pele o que era o fascismo e os seus métodos repressivos, contou numa crónica que saiu a meio de uma exibição pública do documentário de António Barreto e Joana Pontes, Portugal: Um Retrato Social, por se ter irritado com aquele “retrato a preto e branco”, onde tudo parecia ter sucumbido à tristeza permanente, “insultuoso para as pessoas que de facto viveram essa dureza” : “Até eu, o meu irmão, as minhas irmãs, com o pai preso depois de uma tentativa de golpe anti-salazarista da qual saiu à beira da morte, a mãe também presa, uma vida material muito difícil, até eu tive dias e noites de praia, namorei, ouvi música pop, dancei naquilo que na altura se chamavam boîtes, usei o cabelo comprido e roupas extravagantes, fumei charros, tudo isso no Portugal salazarista ou caetanista”.
Testemunho impressionante
Mas não foi apenas no campo da intervenção política que Paulo Varela Gomes se moveu com uma atitude intempestiva, inimiga de todos os estereótipos. Encontramo-lo, nos anos 80 e princípio dos anos 90, no centro da vida intelectual de Lisboa, onde se escrevia e se pensava a vida urbana e os fenómenos da moda (no Blitz, no JL, no Expresso), olhando com uma pulsão teórica de elevado teor os sobressaltos frívolos do “pós-modernismo”; encontramo-lo depois, desde o início do novo século, no seu refúgio provinciano e rural – o campo a sério e não uns arremedos para citadinos românticos ou ociosos -, descobrindo com um entusiasmo pagão os animais, as plantas, os ciclos das estações, manifestando muitas vezes uma fobia em relação à vida urbana. Nesta transformação, foi muito importante a sua experiência indiana, mas também a determinação da sua mulher, Patrícia Vieira, que foi durante trinta anos a sua conselheira intelectual e o seu braço pragmático, e que nos quatro anos da doença foi a “curadoura” (como ele próprio escreveu) que o poupou a residências intermédias ou terminais no hospital – hipótese que lhe causava horror. Esse neologismo, “curadoura”, utilizou-o num texto publicado na revista Granta, em Maio de 2015, intitulado Morrer é mais difícil do que parece, uma proposição que haveria de se confirmar. É um testemunho raro e impressionante, que teve uma enorme repercussão pública, de um doente com cancro em estado quase terminal que conta com crueza a sua atitude perante a doença, desde o momento em que ela lhe foi diagnosticada e na sua evolução.
Teve um lugar pioneiro na crítica da arquitectura contemporânea. Com João Vieira Caldas, foi o rosto desse discurso crítico, a partir da segunda metade dos anos 80, destinado a um público cosmopolita, culto, atento aos cruzamentos de saberes e de disciplinas, fora dos círculos estritos das Faculdades de Arquitectura, mas acabou por fazer a sua tese de doutoramento, que apresentou à Universidade de Coimbra (Departamento de Arquitectura da Faculdade de Ciência e Tecnologia, onde, desde 2002, foi Professor Associado), sobre as igrejas barrocas. E nunca mais regressou à arquitectura contemporânea. De resto, também manteve uma grande distância – ou mesmo uma hostilidade provocatória e cheia de auto-ironia - em relação à arte contemporânea. Ainda se exercitou no desenho e na pintura, mas prevaleceu a sua vocação literária. Com o pseudónimo de Peter Nero Wolf publicou Declaração de Guerra, em 1985, com a assinatura de Heliogábalo publicou Peep Show, em 1987, e Encontro à Beira do Arno, em 1990. Tudo coisas do passado cuja reedição sempre rejeitou.
Essa vocação foi silenciada para deixar emergir a produção científica, o seu trabalho de investigação como historiador da arquitectura e da arte. Uma das suas muitas boutades – tinha o dom da provocação e o talento retórico dos chefes carismáticos - era a de que a escrita verdadeiramente séria era a que exigia notas de rodapé. E durante muitos anos só escreveu textos onde não faltavam notas de rodapé e aparato bibliográfico, para publicações e livros especializados. Mas, ainda assim, os seus textos historiográficos nunca descuraram uma qualidade e a uma maleabilidade da escrita que raramente se verificam na produção académica e muito menos na área onde Paulo Varela Gomes desenvolveu a sua investigação.
Esse é um traço distintivo que os seus pares sempre lhe reconheceram. Mas não é por causa dele que também o reconhecem como um grande historiador da arte: é porque há uma dimensão excepcional na sua capacidade analítica e na sua preparação teórica; é porque soube mobilizar uma cultura vinda de várias disciplinas para tratar os objectos artísticos e arquitectónicos, ciente de que uma história de arte meramente formal, incapaz de incorporar um saber muito mais vasto (a história da cultura, a história política, os princípios epistémicos da época) seria uma disciplina completamente estéril; é porque sempre fez uma historiografia cosmopolita, mesmo quando os seus objectos eram “locais”, integrando dimensões polémicas.
O autor de uma imensidão de artigos, conferências e comunicações em colóquios regressou em 2013 a um mundo sem notas de rodapé, ou apenas com umas poucas, porque nunca prescindiu completamente delas e usou-as onde não eram nada convencionais e já não eram as regras do discurso científico a exigi-las. Esse mundo é o da literatura e fazia tanto parte da sua cultura e da sua vocação como o talento menor de atirar ao alvo, do qual gostava de se gabar, reclamando-o como uma competência - a coordenação do gesto mecânico com a intencionalidade do olhar - relacionada com uma outra: o saber ver.
Autoficção e circunstância
Esse mundo a que regressou a tempo inteiro foi o da narrativa literária: O Verão de 2012 é um romance que se integra num subgénero que é o da autoficção. É verdade que muitas das suas crónicas (entretanto reunidas em Ouro e Cinza) cultivavam uma prosa literária com densidade, que só podia vir de alguém que, no fundo, tinha sido um escritor malgré lui – um escritor relutante. Lendo-o em chave biográfica, percebemos que esse romance nasceu de uma circunstância trágica: da revelação de que estava ameaçado por um cancro mortal, em estado muito avançado.
O Verão de 2012 é uma narrativa ecléctica, que integra discursos de vários géneros, incluindo o ensaístico. Paulo Varela Gomes revelava aqui uma linhagem literária com origem no romance do século XVIII. Um ano depois, publicou Hotel, uma fábula da perversão do voyeurismo, ao serviço da qual está uma prodigiosa invenção arquitectónica. Com este romance, tornava-se evidente que investia agora na literatura todo o tempo que lhe restava. A escrita literária foi para ele uma acção salvífica e testamentária, a que se entregou em estado de urgência.
E o que ela revelou não foi um escritor que chega em última instância a uma terra de salvação, mas alguém que sempre lá tinha estado, mas por delicadeza fez de ausente. Em quatro anos, publicou um livro de crónicas e quatro romances, o último dos quais, saído em Fevereiro, chama-se Passos Perdidos. É uma longa fábula e uma viagem de grande alcance, às vezes por lugares onde Paulo Varela Gomes nunca esteve: o seu mundo romanesco corre, poderoso, a par das ideias. Como as suas ideias correram sempre a par das palavras, que foram as suas armas poderosas, usadas com uma perícia e um júbilo inauditos, em todos os domínios a que se dedicou. Sempre em estado de urgência.
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