Em defesa do Ocidente e do chamado capitalismo

João Carlos Espada
Observador 11/4/2016

A liberdade de expressão que permitiu no Ocidente a divulgação dos Panama Papers é a mesma que protege a liberdade de adquirir propriedade e de a transferir através de contratos voluntários.

Já muito foi dito sobre os chamados Panama Papers. Como observou certeiramente Rui Ramos neste jornal, cada qual encontrou o que quis no seu Panamá. E, como também observaram Francisco Assis no Público e Henrique Monteiro no Expresso, o que grande parte dos comentadores quis encontrar foi a culpa fundamental do chamado capitalismo. Mas essa ligação é no mínimo duvidosa.
Em primeiro lugar, como observaram aqueles três autores, porque foi no Ocidente dito capitalista que os documentos foram livremente divulgados e livremente discutidos. Essa divulgação foi feita por empresas privadas que gozam da protecção que só o Ocidente dito capitalista lhes dá: a protecção que a lei concede à propriedade privada contra os caprichos da vontade arbitrária, incluindo a vontade arbitrária de políticos e comentadores que se reclamam dos superiores interesses do colectivo.
Em segundo lugar, porque foi só no Ocidente dito capitalista que os políticos alegadamente envolvidos vieram de imediato prestar contas em público. O primeiro-ministro da Islândia demitiu-se. O primeiro-ministro britânico reafirmou não ter feito nada de ilícito e, para o provar, vai tornar públicas as declarações fiscais dos últimos seis anos.
Em contrapartida, fora do Ocidente dito capitalista, a censura prévia passou por cima, como sempre, dos direitos de propriedade e de expressão. Ouvimos apenas acusações das lideranças chinesa, russa e venezuelana contra uma alegada conspiração ocidental. Mais nada. No entanto, estes são regimes que se fundam na subordinação da propriedade privada e do interesse privado ao chamado interesse colectivo — exactamente aquilo que muitos dos nossos comentadores dizem que faz falta no Ocidente dito capitalista.
Talvez esses comentadores pudessem admitir a hipótese (bastante conhecida, para os estudiosos destes temas) de que existe uma forte correlação entre dois binómios: por um lado, o respeito do Ocidente pela propriedade privada e o respeito desse mesmo Ocidente pela liberdade de expressão; por outro lado, o desrespeito das ditaduras pela liberdade de expressão e o desrespeito dessas mesmas ditaduras pela propriedade privada.
Por outras palavras, a liberdade de expressão que permitiu no Ocidente a divulgação dos Panama Papers é a mesma que protege a liberdade de adquirir propriedade e de a transferir através de contratos voluntários. Estas três liberdades fundamentais — de expressão, de propriedade e de contrato — decorrem com efeito de um valor fundamental que distingue o Ocidente: a dignidade da pessoa. É esta que funda o direito de cada um à vida, à liberdade e à busca da felicidade, parafraseando a Declaração de Independência norte-americana de 1776.
William Pitt, primeiro-ministro britânico, celebrizou em 1763, num discurso no Parlamento, esta visão da limitação do poder político através da lei que protege a liberdade e a propriedade:
“O homem mais pobre pode na sua cottage desafiar toda a força da Coroa. A cottage pode ser frágil; o seu telhado pode abanar; o vento pode soprar através dela; as tempestades podem entrar, a chuva pode entrar — mas o Rei de Inglaterra não pode entrar; todas as suas forças não se atrevem a atravessar o limiar do casebre arruinado.”
O que os nossos comentadores chamam “capitalismo ocidental” é apenas um subproduto desta protecção fundamental dos direitos da pessoa. Essa protecção inclui o direito de cada um a aspirar melhorar a sua condição. Desse igual direito de todos emerge a inevitável desigualdade de resultados — que, repito, decorre da igual liberdade de cada um para tentar melhorar a sua condição.
Curiosamente, como recordou Miguel Monjardino no Expresso, a desigualdade decorrente deste regime de liberdade é menor do que a desigualdade existente nos regimes que reprimem a liberdade e os direitos de propriedade. Citando um estudo de The Economist, o autor recordou que, há três anos, “os 50 congressistas mais ricos dos EUA valiam 1,6 mil milhões de dólares. Na China o valor atingia os 94,7 mil milhões.”
A razão deste aparente paradoxo foi sucintamente fornecida por Henrique Monteiro:
“Ao contrário do que pensam com demasiada facilidade os arautos do populismo, o problema não está no facto de haver ricos; nem sequer na desigualdade entre ricos e pobres (não é por haver ricos que há pobres; Bill Gates ou Zuckerberg ficaram ricos e criaram mais riqueza e não pobreza). O problema está em haver tantos pobres. E onde eles mais abundam é onde o capitalismo, o mercado e a livre concorrência menos se desenvolveram.”
Estas observações deveriam fazer refrear os ímpetos anti-capitalistas dos nossos comentadores. E deveriam introduzir alguma serenidade na necessária discussão sobre a existência dos chamados offshores.
Não conhecendo o tema, gostaria de poder ouvir os argumentos de ambos os lados: por que motivos legítimos (distintos, portanto, de práticas criminosas ou da evasão fiscal) devemos permitir a sua existência; por que motivos legítimos (distintos, portanto, do ódio aos mais ricos) devemos ilegalizá-los.

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