O estranho caso de Josef Fritzl
PÙBLICO 21.05.2008, Pedro Afonso
Como foi possível que alguém mantivesse durante 24 anos tal barbárie sem nunca ter sido detectado?
Durante 24 anos o austríaco Josef Fritzl manteve a sua filha, de quem teve sete filhos, sob uma tortura indescritível. Elizabeth Fritzl e os três filhos que com ela permaneceram foram tratados como animais, enclausurados num cárcere privado com pouco mais de 60 m2 para satisfazer, segundo o próprio agressor, um vício obscuro: o vício do incesto. Com este comportamento Josef Fritzl mostrou tendências sexuais egoístas e contra naturam, em detrimento de tendências sexuais altruístas e sensatas.Perante a atrocidade deste crime, tão abominável como absurdo, emerge uma pergunta: como foi possível que alguém mantivesse dissimuladamente durante 24 anos esta barbárie sem nunca ter sido detectado? Além disso, carece de justificação racional tamanha crueldade, explicada aparentemente apenas pelo incontrolável impulso sexual incestuoso. De uma forma hábil, o advogado de defesa quer agora alegar insanidade mental do seu cliente, sugerindo o seu internamento num hospital psiquiátrico.
A brutalidade do cativeiro, a incompreensibilidade deste fenómeno e desapiedade de tais actos incestuosos levam-nos justamente a pensar em insanidade mental do arguido. Todavia, parece que estamos diante de um crime demasiado prolongado no tempo, e complexo na sua organização e planificação, para que possa ser resultado de um acto impulsivo ou fruto de um estado de alienação.
Sem dúvida que esta é uma história insólita. Apesar de ser um assunto apetecível para a comunicação social, a sua mediatização também pode servir para operar algumas mudanças, designadamente favorecendo a denúncia de outros casos de abusos sexuais, ou provocar alterações legislativas que protejam as vítimas. De resto, o Governo austríaco já anunciou que pretende agravar a sua legislação respeitante aos crimes sexuais como forma de prevenir situações como a que ocorreu em Amstetten.
Neste caso, por detrás de um cidadão aparentemente "normal" e integrado socialmente, escondia-se uma personalidade perversa, sádica, repleta de desejos pérfidos e de emoções estranhas. Mas não eram também vários ditadores sanguinários figuras aparentemente normais, muitos dos quais afáveis no trato, com famílias, e indistinguíveis à primeira vista do cidadão comum? O trabalho de avaliação realizado pelo psiquiatra de Nuremberga Leon Goldensohn, junto de alguns dos mais destacados criminosos de guerra nazis, demonstra-o. O estranho caso de Josef Fritzl serve de reflexão para o facto de existirem presentemente em todas as sociedades - tal como sempre aconteceu na história do Homem - mentes perversas, bem dissimuladas, muitas das quais só são contidas de cometer actos horrendos e atrozes através do controlo de uma sociedade civilizada com leis e regras defensoras dos direitos humanos.
Mas uma sociedade que defende cada vez mais o relativismo moral, que resvala perigosamente para a ditadura do individualismo, despreza a ética e destrói a noção de culpa, cria condições para florescerem indivíduos anti-sociais. Se penetrarmos um pouco nas mentes de alguns psicopatas, verificamos que se consideram as únicas pessoas importantes e significativas, entendendo como um direito poder dispor dos outros para satisfação dos seus desejos. A história ensina-nos também que muitos destes indivíduos são sedutores, inteligentes e manipuladores. Para sustentarem as suas aspirações, recorrem facilmente à racionalização e a teorias fascinantes que dissimulam as suas ambições de poder, e de subjugação do próximo, tendo como objectivo final concretizar as suas depravadas pretensões pessoais. Por outras palavras, existem vários "Franz Fritlz" em estado latente que - tal como as bactérias - só precisam de um hospedeiro e de um ambiente propício para se multiplicar e espalhar a enfermidade.
Na sociedade e na política, tal como na Psiquiatria, a linha que separa a sanidade da alienação é ténue. Vejo, por conseguinte, com alguma apreensão e cepticismo o experimentalismo legislativo, o radicalismo político e a intolerância religiosa que se manifestam um pouco por todo o lado. Ao fim e ao cabo, há muitos mais psicopatas, para além de Franz Fritlz, ansiosos por terem o seu bunker. Médico psiquiatra
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