Barbárie praxista

Barbárie praxista

PÙBLICO 23.05.2008, Graça Franco


Ou se consegue travar e fazer retroceder agora ou essa incultura vai deixar muitas outras marcas na nossa sociedade
O que alegadamente se passou, na madrugada de dia 12 em Braga, durante as festas da Queima das Fitas, com a alegada violação de uma caloira por um "veterano" devia servir de pedra-de-toque à comunidade e à Academia para reflectir sobre o que representa este caldo de cultura (ou incultura) praxista onde permitimos que se formem sucessivas gerações de universitários. As nossas futuras "elites".Uma cultura que Manuel Pinto magnificamente descrevia, terça-feira, numa crónica no Página 1 (o novo jornal digital da RR), dedicada ao caso. O professor, da Universidade do Minho, chamava a atenção para o protagonismo que assumem nestes contextos "figurões cujo currículo é terem chumbado muitas vezes. Quanto mais sornas, quanto mais incompetentes, quanto mais dissipadores dos dinheiros públicos, mais altos os cargos, mais descarada a desfaçatez". Acrescentava: "A verdade é que esses grupos de párias, escudados na conivência ou apoio das estruturas universitárias, incluindo as direcções associativas, em lugar de acolherem e de integrarem os caloiros (mas como pode acolher e integrar quem vive desfasado daquilo que pauta e marca a vida universitária?), submetem-nos a uma "cultura" de baixeza, palavrão e obscenidade. E não durante uma semana ou duas, mas arrastando-se praticamente ao longo de todo o ano, com a conivência de todos".Partilho com Manuel Pinto a ressalva que nem tudo o que se passa nas praxes e nas festas académicas é "ipso facto degradante", mas também o acompanho quando se mostra cada vez mais convencido que "a matriz deste tipo de manifestações é de facto fascizante, deletéria, e ao arrepio dos direitos, liberdades e garantias". Também me parece "lamentável e revelador que os estudantes, no seu conjunto, deixem correr o marfim nesta matéria" e subscrevo a conclusão última do professor: é "absolutamente monstruoso que aceitemos enquanto educadores e responsáveis, que sejam os calaceiros e parasitas a impor as suas regras" é "uma vergonha para a Universidade e para o país". Penso o mesmo. E assumo a minha quota-parte na culpa. Nos sete anos que dediquei à docência no Departamento de Comunicação da UNL (e em boa parte dos quais integrei o respectivo conselho pedagógico) nada fiz para me questionar, ou levar os meus colegas a questionarem-se, sobre a bondade da praxe. Como a maioria dos docentes, ignorei a coisa. Já passaram dez anos e é minha convicção que o que começou " numa festa", onde pontuavam aqui e ali alguns excessos, se transformou num excesso disfarçado, ainda agora, aqui e além por algumas festas. Já há uns anos aqui sustentei (a propósito do caso de uma outra aluna que tivera a coragem de apelar ao ministro Lince contra os excessos da praxe) que, nesta matéria, "vemos, ouvimos e lemos" e não podemos continuar a ignorar. Achava, na altura, que estávamos chegados a esse ponto. Acho agora que o passámos. É culposo o silêncio. É criminosa a cumplicidade. O poder intimidatório dos praxistas está bem patente nas estratégias criativas dos "antipraxe" para contornar o fenómeno numa estratégia de controlo de danos sem directamente os afrontar. São verdadeiros heróis que arriscam o ostracismo os que ousam afrontar directamente o sistema.Mais. Estou mesmo convencida que das duas uma: ou se consegue travar e fazer retroceder agora ou essa incultura vai deixar muitas outras marcas na nossa sociedade, debilitando ainda mais a nossa já frágil sociedade civil.Um exemplo: assistimos a um crescendo de violência doméstica entre jovens nos mais diversos extractos sociais, confirmando, espantados, que os maiores níveis culturais não obstam a este fenómeno transversal. E não reflectimos sobre os porquês? Alertam-nos as estruturas de apoio às vítimas para a preocupação com que devem ser identificados precocemente os sinais deste fenómeno e dizem-nos que a violência começa, cada vez mais cedo e em maior número, "logo nas relações de namoro". Mas não nos perguntamos sobre os efeitos da "erotização da violência" numa cultura que legitima e se baseia na humilhação permanente do outro e reivindica e fomenta a sua aceitação submissa. Uma cultura que promove o encarneiramento e a obediência acéfala face às "ordens" mais absurdas vinda do mais forte, ou do mais velhos (na Universidade a antiguidade é um posto e quanto mais cábula melhor!). Em que os "desejos" dos "veteranos" são apresentados como "ordens" a cumprir sem hesitação pelos "caloiros". Abre-se assim a porta a todos os excessos, a todas as arbitrariedades. Ao pior que se esconde em cada um de nós. E em cada um de nós pode esconder-se, mais facilmente do que se imagina, "o pior". Como aqui escrevia, há dias, o psiquiatra Pedro Afonso, "se penetrarmos um pouco nas mentes de alguns psicopatas, verificamos que se consideram as únicas pessoas importantes e significativas, entendendo como um direito poder dispor dos outros para a satisfação dos seus desejos. A história ensina-nos também que muitos desses indivíduos são sedutores, inteligentes e manipuladores. Para sustentarem as suas aspirações recorrem facilmente à racionalização e a teorias fascinantes que dissimulam as suas ambições de poder, e de subjugação do próximo, tendo como objectivo final concretizar as suas depravadas pretensões pessoais. Por outras palavras, existem vários "Franz Fritlz" em estado latente que - tal como as bactérias - só precisam de um hospedeiro e de um ambiente propício para se multiplicar e espalhar a enfermidade. Na sociedade e na política, tal como na Psiquiatria, a linha que separa a sanidade da alienação é ténue".Os casos não se confundem. Mas, ressalvadas as distâncias, que são muitas, há ensinamentos comuns. Vale a pena ler o relato da estudante nas páginas dos jornais. E a constante referência a que de início lhe parecia apenas estar a corresponder a mais uma praxe, e, como as exigências provinham de "um cardeal", exigiam um duplo respeito e aconselhavam o mais rápido acatamento. Acede inicialmente a acompanhá-lo e é tarde quando constata que, arrastada para o interior da tenda escura (e estando alcoolizada), não tem força para se opor aos seus desejos transformados em ordens impostas com cada vez mais força bruta. A relação de confiança inicial (era namorado de uma amiga) esvai-se. Mas é tarde. Sei que esta é apenas uma versão (da alegada vitima!). Não será provavelmente partilhada pelo jovem acusado de violação. As investigações e os tribunais dirão de sua justiça neste caso concreto. Mas quantos outros casos não terão ocorrido, um pouco por todo o país, sem nunca os conhecermos. Quantos terão permanecido silenciados num misto de "recusa" de aceitar que possa ter acontecido e "vergonha por "ter deixado" que acontecesse", como se, cultivada a bactéria, fosse possível travar o seu caminho. Não vale a pena meter a cabeça na areia. E não me venham dizer que este caldo cultural não se opõe à "igualdade de género". Somos burros ou fingimo-nos cegos?Em plena época de exames, quando era suposto que os nossos estudantes estivessem sobretudo mergulhados nos livros, vemo-los encharcados em álcool, a andar aos bordos, madrugada fora, num espectáculo dominado por uma euforia doentia (onde tudo, ou quase, remete para sexo/droga e álcool em doses alarmantes). Depois, queixamo-nos de uma das mais elevadas taxas de insucesso escolar no ensino superior! Questionamo-nos sobre como é possível ter uma das mais elevadas taxas de desemprego de licenciados e ouvimos os empresários perguntar: "Que andou esta gente a fazer durante anos nas universidades onde aprenderam a pensar tão pouco e a pensar tão mal?". Jornalista

Comentários

Anónimo disse…
A Universidade é uma Selva. Infelizmente, é-o. Passei por Coimbra e lá estudei 5 anos (4 + 1 de estágio), todos feitos com a responsabilidade e a dedicação recebidas dos meus pais. Nunca chumbei uma única cadeira, embora algumas que custassem muito a fazer.

Da Universidade, antes de entrar, ouvia maravilhas: os amigos, as noitadas, etc., etc., etc. E também tinha ouvido algumas coisas sobre as praxes. Infelizmente, não me tinham contado aquilo de que não gostei.

Seria bom que nos jornais saíssem com mais frequência as coisas (TODAS!), que se mandam fazer aos caloiros, inclusivamente aquelas que se acham mais "inocentes", porque, então, toda a gente, ia ficar a saber o que se manda os caloiros fazer... excepto quando têm a enorme ousadia e coragem de dizer NÃO, e de com isso suportar, a partir daí, o desdém, os insultos, o "boulling" emocional.

Tive poucas praxes, porque ousei ser daquelas/es que dizem NÃO e que não estão para cooperar com a falta de educação, com a burrice e sobretudo com a falta de respeito pelo Outro,uma pessoa que não se conhece e que tem sensibilidades diferentes, ou outra maneira de encarar as coisas.

Será que toda a gente sabe que há caloiros que passam um ano inteiro a ser ultrajados: mandam-lhes fazer limpezas, mandam-lhes gritar asneiras asquerosas nas ruas, mandam-lhes fingir posses de sexo (existe de tudo para todos os gostos... - a esta ninguém escapa!), mandam-lhes chamar "camelos" e "bestas" aos próprios colegas e assumirem-se enquanto tal, mandam-nos para dentro de salas de aulas escuras gritar fantasias sexuais, às raparigas mandam-nas sentar na perna..., já para não falar nas competições de bebidas que deixam os jovens a vomitar noite dentro.

Alguém acha tudo isto inocente? Então, é porque nunca lhe foi pedido que o fizesse ou perdeu toda a sensibilidade e pudor. É o normal... de quem passa pela Universidade e se torna mais um dos deles.

O meu dia mais esperado, foi o da 2.ª serenata: era, finalmente, livre! Recusei, no ano a seguir, praxar caloiros.


(Não deixo o meu nome, para preservar a minha identidade.)

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