O despertar do tigre, JCdasNeves, DN080519

O DESPERTAR DO TIGRE

João César das Neves
professor universitário
naohaalmocosgratis@fcee.ucp.pt

Nos factos marcantes de 2008, de certo nenhum se revelará mais influente que a consagração da entrada da China no concerto das nações. Por isso, muito do futuro mundial depende do sucesso dos Jogos Olímpicos.

A civilização chinesa é uma das mais antigas e ricas da Humanidade. Durante 200 anos, esse esplendor foi assombrado por terríveis desastres, após a decadência da dinastia Qin no finais do século XVIII. Pouco depois, Napoleão fez a célebre previsão: "A China é um tigre que dorme. Não acordem o tigre. Quando a China acordar, o mundo tremerá."

Após séculos de sofrimentos indescritíveis às mãos de estrangeiros, "senhores da guerra" e comunistas, as últimas três décadas parecem finalmente confirmar o vaticínio. A China acordou e quer jogar.

Os Jogos Olímpicos, apesar da ambição universal, nasceram como um fenómeno ocidental. Em 1964, o Japão usou pela primeira vez o evento como símbolo da sua chegada ao grupo dos países influentes. Desde então, essa função repetiu-se no México (1968), Seul (1988) e Barcelona (1992).

Esse é também o propósito do encontro em Beijing, manifestando o poder e estatuto da China industrial. O problema é que esta manifestação inclui também um desafio aos valores ocidentais, tal como na Berlim nazi (1936) e na Moscovo soviética (1980), é um regime alternativo que se quer mostrar ao nível dos maiores.

Deste modo, os Jogos de Agosto incluem uma fatal ambiguidade e um terrível perigo. Por um lado, o Governo e povo chineses querem mostrar-se acolhedores, cordatos e amigáveis, aceitando participar com o resto do mundo em suave camaradagem. Por outro, a realidade da sociedade chinesa horroriza os estrangeiros.

A abertura e exposição mediática implicada na competição podem ter precisamente o efeito contrário ao pretendido. Os recentes incidentes à volta da chama olímpica mostram-no bem.

Para os activistas ocidentais as manifestações e os insultos são formas de denunciar atrocidades e opressões.

Ninguém duvida da justeza dessas acusações. Aliás, a opressão no Tibete é apenas um dos muitos horrores da impiedosa cultura maoísta, que incluem também os desastres da corrupção e poluição, o aborto forçado da política do filho único", a perseguição religiosa e a miséria de camponeses e imigrantes urbanos, entre outros.

Não está, porém, apenas em causa o ataque a uma ditadura.

A questão é bastante mais complexa e profunda. Trata-se de um diálogo com uma cultura radicalmente diferente da nossa. As palavras e conceitos têm sentidos muito distintos na antiga e rica civilização oriental. Isto levanta obstáculos novos e inesperados na habitual contestação a regimes indesejáveis.

A China é uma sociedade criada nos valores confucionistas e taoístas, a que depois se juntaram o budismo e marxismo. Nenhuma destas filosofias lida bem com a liberdade individual, identidade pessoal, direitos humanos e outros critérios do Ocidente moderno.

Não é nada óbvio que a opressão nasça da maldade dos dirigentes, ou que a opinião pública concorde com o nosso diagnóstico. Japão, Coreia, Índia, entre outros, manifestam que a conciliação ou, pelo menos, o diálogo é possível. Mas essas mesmas experiências não escondem as dificuldades e os mal-entendidos do processo.

Além disso, a Europa e os EUA dificilmente se podem apresentar como exemplos inspiradores ou juízes severos dos chineses. Há muita coisa que nos censuram, e ainda mais que nós censuramos a nós mesmos.

Quando recomendamos democracia e liberdade aos orientais temos de compreender que eles não gostam do que vêem na nossa realidade. Pior, tristes recordações, como a "guerra do ópio", anulam a nossa credibilidade nessas regiões.

Simplismo e precipitação só prejudicam aquilo que dizem defender. Devemo-nos perguntar o que será mais vantajoso para as vítimas chinesas e para a estabilidade universal: uma China humilhada por um fiasco dos Jogos ou a criação de um clima de cordialidade e abertura após uma organização bem-sucedida, mas ocultando os horrores? A resposta não é óbvia. Muito do futuro se joga em Agosto.

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