Democracia liberal e Cristianismo
João Carlos Espada, Expresso, 080524
jcespada@netcabo.pt
Muitos princípios essenciais da democracia liberal assentam na doutrina cristã. E muitas pessoas ficarão surpreendidas com isso. Mas é verdade. E vale a pena conversar mais sobre essa surpresa
Dom José Policarpo, cardeal-patriarca de Lisboa, presidiu no domingo passado a uma mesa-redonda sobre a doutrina social da Igreja. Um dos muitos aspectos interessantes do debate consistiu em revelar como muitos princípios essenciais da democracia liberal assentam na doutrina cristã.
Para o Cristianismo, o homem é criatura, não é criador. Isso desde logo implica que ele faz parte de uma ordem mais vasta que o transcende. Essa ordem pode ser gradual e tentativamente descoberta pela razão, assistida pelo diálogo com a fé. Desse processo faz parte a descoberta dos valores morais, designadamente dos deveres e direitos morais. Estes não são produto da vontade, nem são arbitrários ou equivalentes. São descobertos, não inventados.
A criatura que o homem é foi criada à imagem e semelhança de Deus - um Deus que ama a sua criação. Por isso, o homem é dotado de uma dignidade moral irredutível que une toda a família humana. Essa dignidade funda os Direitos do Homem, no centro dos quais estão o direito à vida e à liberdade, antes de mais a liberdade da consciência e da fé. Estes direitos são prévios aos governos e a função dos governos é respeitá-los e protegê-los.
O facto de o homem ser criatura e não criador gera uma outra dimensão importante. O cristão é um cidadão de duas cidades: a cidade dos homens e a cidade de Deus. Este dualismo fundamental tem, por sua vez, várias consequências políticas.
Em primeiro lugar, o cristianismo não pode subscrever qualquer utopia política, secularista ou teocrática. A redenção do homem através da política é impossível. A cidade de Deus não pode ser construída neste mundo. As promessas políticas utópicas são, na sua raiz, propostas ateias e totalitárias que querem fazer do homem criador e não criatura.
Mas o cristão tem o dever de dar testemunho da Cidade de Deus na cidade dos homens.
Por isso, a principal reclamação política do Cristianismo é a liberdade religiosa e, em particular, a liberdade da Igreja. Isso implica separação da Igreja e do Estado, ou o princípio do Governo limitado.
Esta limitação da esfera política exprime um entendimento pluralista da vida em sociedade. No centro da mensagem cristã está a reclamação pluralista de que as pessoas, as famílias e outras instituições espontâneas intermédias possam usufruir livremente os seus modos de vida pacíficos - os quais não podem ser arbitrariamente redesenhados pelo poder político.
Muitas pessoas que subscrevem estes princípios ficarão talvez surpreendidas por vê-los justificados pelo Cristianismo. É um sinal de que vale a pena conversar mais sobre o tema.
jcespada@netcabo.pt
Muitos princípios essenciais da democracia liberal assentam na doutrina cristã. E muitas pessoas ficarão surpreendidas com isso. Mas é verdade. E vale a pena conversar mais sobre essa surpresa
Dom José Policarpo, cardeal-patriarca de Lisboa, presidiu no domingo passado a uma mesa-redonda sobre a doutrina social da Igreja. Um dos muitos aspectos interessantes do debate consistiu em revelar como muitos princípios essenciais da democracia liberal assentam na doutrina cristã.
Para o Cristianismo, o homem é criatura, não é criador. Isso desde logo implica que ele faz parte de uma ordem mais vasta que o transcende. Essa ordem pode ser gradual e tentativamente descoberta pela razão, assistida pelo diálogo com a fé. Desse processo faz parte a descoberta dos valores morais, designadamente dos deveres e direitos morais. Estes não são produto da vontade, nem são arbitrários ou equivalentes. São descobertos, não inventados.
A criatura que o homem é foi criada à imagem e semelhança de Deus - um Deus que ama a sua criação. Por isso, o homem é dotado de uma dignidade moral irredutível que une toda a família humana. Essa dignidade funda os Direitos do Homem, no centro dos quais estão o direito à vida e à liberdade, antes de mais a liberdade da consciência e da fé. Estes direitos são prévios aos governos e a função dos governos é respeitá-los e protegê-los.
O facto de o homem ser criatura e não criador gera uma outra dimensão importante. O cristão é um cidadão de duas cidades: a cidade dos homens e a cidade de Deus. Este dualismo fundamental tem, por sua vez, várias consequências políticas.
Em primeiro lugar, o cristianismo não pode subscrever qualquer utopia política, secularista ou teocrática. A redenção do homem através da política é impossível. A cidade de Deus não pode ser construída neste mundo. As promessas políticas utópicas são, na sua raiz, propostas ateias e totalitárias que querem fazer do homem criador e não criatura.
Mas o cristão tem o dever de dar testemunho da Cidade de Deus na cidade dos homens.
Por isso, a principal reclamação política do Cristianismo é a liberdade religiosa e, em particular, a liberdade da Igreja. Isso implica separação da Igreja e do Estado, ou o princípio do Governo limitado.
Esta limitação da esfera política exprime um entendimento pluralista da vida em sociedade. No centro da mensagem cristã está a reclamação pluralista de que as pessoas, as famílias e outras instituições espontâneas intermédias possam usufruir livremente os seus modos de vida pacíficos - os quais não podem ser arbitrariamente redesenhados pelo poder político.
Muitas pessoas que subscrevem estes princípios ficarão talvez surpreendidas por vê-los justificados pelo Cristianismo. É um sinal de que vale a pena conversar mais sobre o tema.
Comentários