O pedido de desculpas
O pedido de desculpas
PÙBLICO
15.05.2008, Miguel Gaspar
A polémica chegou pesada, como o ambiente de uma sala de fumo de aeroporto ao fim do dia. Correu veloz na Internet, com os comentários a pegarem-se uns aos outros, como pontas de cigarro na boca de um fumador hard core. Mas acabou depressa, quase como quem acende e apaga um fósforo. Pouco menos de 24 horas após o PUBLICO.pt ter noticiado que José Sócrates e Manuel Pinho tinham andado a fumar no voo oficial para a Venezuela, o primeiro-ministro apresentou um pedido de desculpas e declarou que vai deixar de fumar. Assim. E disse isto tudo num lugar a que chamam a Faixa do Orinoco, pelo que melhor será baptizar esta afirmação de Sócrates como a Declaração do Orinoco. Brincadeiras à parte, fez bem o primeiro-ministro em pedir desculpas. Muito bem mesmo. O que estava em jogo, portanto, não era tão pouco quanto isso. Tanto no plano da imagem do chefe do Governo, como no do respeito pela lei e pelos cidadãos que cumprem a lei. Reconhecer um erro é melhor do que aquilo a que nos habituou um primeiro-ministro normalmente pouco dado a gestos como este. Afinal de contas, o que tornou esta polémica tão forte, além da razão óbvia de que os chefes de Governo não devem violar as leis que aprovam (uma regra igualmente aplicável à Presidência da República, não por o Presidente fumar em aviões, mas por também autorizar o fumo nos voos oficiais de Belém)? Essencialmente isto: a Lei do Tabaco foi aplicada pelo Governo de forma fundamentalista. O Executivo optou pela solução mais radical em todos os casos, excepto no pouco abonatório exemplo dos casinos. Como poderiam o chefe do Governo e o primeiro-ministro arrogar-se o direito de criar para si um estatuto de excepção, depois de toda a polémica em torno da Lei do Tabaco? Os fumadores que agora se transferiram para os passeios em frente às empresas onde trabalham ou desaparecem misteriosamente a meio dos jantares compreenderam que este constrangimento não se aplicava a todos. E os que não fumam, e com a lei deixaram de ser fumadores passivos à força, ficaram a saber que esse direito pode ser suspenso por capricho de José Sócrates. Faltou coerência ao primeiro-ministro numa matéria que toca toda a gente - todos somos fumadores ou não-fumadores. Afinal, o político determinado, o animal feroz, fraqueja ao fim de algumas horas sem o seu cigarrito... E é preciso compreender que o Sócrates que aprovou a Lei do Tabaco é o mesmo político que do Calçadão do Rio de Janeiro à Praça Vermelha de Moscovo se faz fotografar em pleno jogging. Sócrates é o primeiro primeiro-ministro in office que consegue correr sete quilómetros seguidos. A sua imagem de adepto dos estilos de vida saudáveis não poderia sobreviver ao relato anedótico dos cigarros fumados às escondidas, atrás de uma cortina, perante o incómodo da tripulação do avião.A sanção foi dura. No PÚBLICO de ontem, o constitucionalista Jorge Miranda lembrava que não há excepção para a lei. E tanto ele como Vital Moreira lembraram o que é de elementar bom senso: os políticos têm que dar o exemplo.E lembra-se pelo caminho à TAP, que na terça-feira dizia "não compreender" a notícia do PÚBLICO.pt, que afinal de contas a lei não é suspensa em caso de voo fretado. Pretendendo esclarecer-nos com elevação - como compete a uma transportadora aérea -, perdeu uma bela ocasião para estar calada. De qualquer modo, já nenhum voo poderá invocar um estatuto de "excepção".Não estou interessado em saber se o primeiro-ministro vai deixar de fumar - o lado exagerado desta Declaração do Orinoco. Isso é do foro privado do cidadão José Sócrates. Mas a democracia portuguesa cresceu um bocadinho com este pedido de desculpas.
PÙBLICO
15.05.2008, Miguel Gaspar
A polémica chegou pesada, como o ambiente de uma sala de fumo de aeroporto ao fim do dia. Correu veloz na Internet, com os comentários a pegarem-se uns aos outros, como pontas de cigarro na boca de um fumador hard core. Mas acabou depressa, quase como quem acende e apaga um fósforo. Pouco menos de 24 horas após o PUBLICO.pt ter noticiado que José Sócrates e Manuel Pinho tinham andado a fumar no voo oficial para a Venezuela, o primeiro-ministro apresentou um pedido de desculpas e declarou que vai deixar de fumar. Assim. E disse isto tudo num lugar a que chamam a Faixa do Orinoco, pelo que melhor será baptizar esta afirmação de Sócrates como a Declaração do Orinoco. Brincadeiras à parte, fez bem o primeiro-ministro em pedir desculpas. Muito bem mesmo. O que estava em jogo, portanto, não era tão pouco quanto isso. Tanto no plano da imagem do chefe do Governo, como no do respeito pela lei e pelos cidadãos que cumprem a lei. Reconhecer um erro é melhor do que aquilo a que nos habituou um primeiro-ministro normalmente pouco dado a gestos como este. Afinal de contas, o que tornou esta polémica tão forte, além da razão óbvia de que os chefes de Governo não devem violar as leis que aprovam (uma regra igualmente aplicável à Presidência da República, não por o Presidente fumar em aviões, mas por também autorizar o fumo nos voos oficiais de Belém)? Essencialmente isto: a Lei do Tabaco foi aplicada pelo Governo de forma fundamentalista. O Executivo optou pela solução mais radical em todos os casos, excepto no pouco abonatório exemplo dos casinos. Como poderiam o chefe do Governo e o primeiro-ministro arrogar-se o direito de criar para si um estatuto de excepção, depois de toda a polémica em torno da Lei do Tabaco? Os fumadores que agora se transferiram para os passeios em frente às empresas onde trabalham ou desaparecem misteriosamente a meio dos jantares compreenderam que este constrangimento não se aplicava a todos. E os que não fumam, e com a lei deixaram de ser fumadores passivos à força, ficaram a saber que esse direito pode ser suspenso por capricho de José Sócrates. Faltou coerência ao primeiro-ministro numa matéria que toca toda a gente - todos somos fumadores ou não-fumadores. Afinal, o político determinado, o animal feroz, fraqueja ao fim de algumas horas sem o seu cigarrito... E é preciso compreender que o Sócrates que aprovou a Lei do Tabaco é o mesmo político que do Calçadão do Rio de Janeiro à Praça Vermelha de Moscovo se faz fotografar em pleno jogging. Sócrates é o primeiro primeiro-ministro in office que consegue correr sete quilómetros seguidos. A sua imagem de adepto dos estilos de vida saudáveis não poderia sobreviver ao relato anedótico dos cigarros fumados às escondidas, atrás de uma cortina, perante o incómodo da tripulação do avião.A sanção foi dura. No PÚBLICO de ontem, o constitucionalista Jorge Miranda lembrava que não há excepção para a lei. E tanto ele como Vital Moreira lembraram o que é de elementar bom senso: os políticos têm que dar o exemplo.E lembra-se pelo caminho à TAP, que na terça-feira dizia "não compreender" a notícia do PÚBLICO.pt, que afinal de contas a lei não é suspensa em caso de voo fretado. Pretendendo esclarecer-nos com elevação - como compete a uma transportadora aérea -, perdeu uma bela ocasião para estar calada. De qualquer modo, já nenhum voo poderá invocar um estatuto de "excepção".Não estou interessado em saber se o primeiro-ministro vai deixar de fumar - o lado exagerado desta Declaração do Orinoco. Isso é do foro privado do cidadão José Sócrates. Mas a democracia portuguesa cresceu um bocadinho com este pedido de desculpas.
Comentários