O momento decisivo para a China
Miguel Monjardino
Expresso, 080517
Um dos primeiros efeitos deste terramoto foi tornar mais clara a verdadeira dimensão de problemas políticos internos |
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A desastrosa reacção de Pequim ao terramoto em Tangshan teve enormes consequências políticas. A mais importante foi a queda dos chamado ‘Bando dos Quatro’ e o fim da Revolução Cultural que arruinou completamente a China. Um mês e meio depois, Mao Tsé-Tung morreu, muito céptico em relação ao futuro do regime que ajudou a fundar, em 1949.
Ao contrário do que Mao pensou, nas décadas que se seguiram, o regime chinês mostrou uma extraordinária capacidade para se manter no poder e transformar o país a uma velocidade estonteante. Se olharmos para as últimas décadas, vemos que a enorme maioria dos chineses nunca viveu tão bem como agora. Esta situação ajuda a explicar o optimismo e a confiança em relação ao futuro que se sente no país. 2008, com os Jogos Olímpicos, devia ser o ano em que a elite política chinesa relembraria à sua sociedade e ao mundo os benefícios de um regime autocrático. O problema, como costuma acontecer na política interna e externa, têm sido as surpresas - as cheias no Inverno e os protestos no Tibete.
O terramoto na província de Sichuan é a última surpresa a abater-se sobre a sociedade e o Governo da China. A maneira como os mais altos responsáveis chineses têm vindo a gerir o desastre de Sichuan mostra que o fantasma de Tangshan está bem presente nos gabinetes governamentais em Pequim. Este fantasma explica a decisão destes responsáveis de usar os trágicos acontecimentos desta semana como um teste à sua competência e legitimidade interna.
Vendo bem, os decisores chineses não têm alternativa. As livrarias, as revistas e os jornais internacionais estão cheios de livros, ensaios e artigos sobre a rápida e imparável marcha chinesa em direcção à grandeza internacional. Esta marcha tem vindo a causar uma mistura de choque e pavor na Europa e nos EUA. De fora desta narrativa ficam a turbulenta história do país e importantes desafios sociais e económicos. Há muita coisa que ainda não é possível saber sobre o que aconteceu nas pequenas cidades, vilas e aldeias de Sichuan. Dito isto, os decisores chineses sabem melhor do que ninguém que um dos primeiros efeitos deste terramoto foi tornar bastante mais clara a verdadeira dimensão de uma série de problemas altamente políticos no interior do país. A credibilidade e a influência do regime dependem da sua capacidade para resolver estes problemas no futuro.
Um dos problemas mais importantes é de longe o da disparidade de rendimentos. Nas últimas duas décadas, a economia chinesa cresceu a uma média anual de nove por cento. Isto permitiu um enorme aumento do rendimento familiar ou individual disponível e uma das maiores reduções da pobreza extrema da história. O problema para Pequim é que este aumento foi muito mais elevado nas grandes cidades, onde vive praticamente toda a nova classe média chinesa, do que nas zonas rurais. Gerir as expectativas da classe média ao nível de empregos, habitação, escolas, saúde e infra-estruturas é crucial para o futuro do regime. As zonas rurais, todavia, não podem ser esquecidas. Nessa China que pouco conhecemos e vemos vivem cerca de 850 milhões de pessoas. Só para termos uma ideia do que estamos a falar, a União Europeia tem 490 milhões de habitantes e os EUA 300 milhões.
Ao longo dos últimos anos, a liderança chinesa tem vindo a chamar a atenção para este problema e para as suas consequências políticas e económicas. A corrupção, a poluição e o aumento da inflação têm vindo a agravar estas disparidades. O terramoto em Sichuan mostra o preço deste estado de coisas no interior do país. A maneira mais rápida de ver isto passa por comparar a engenharia e a arquitectura dos edifícios em Pequim com a das cidades e vilas de Sichuan. Em Pequim estão a acabar as últimas obras de um programa de construção extraordinariamente ambicioso. Este programa tem grande qualidade ao nível da engenharia e da arquitectura. Em Sichuan, a qualidade da engenharia e da arquitectura são muito diferentes das da capital. Esta discrepância ajuda a explicar o número de mortos, feridos, desalojados e a destruição na província chinesa.
2008 e os Jogos Olímpicos celebram o que a China conseguiu fazer nos últimos 30 anos. Sichuan relembra aos decisores em Pequim o que ainda falta fazer.
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