A humanidade do mal, Fernanda Cancio, DN 080502

A HUMANIDADE DO MAL


Fernanda Câncio
jornalista
fernanda.m.cancio@dn.pt

De vez em quando surge uma história assim. Não escrevo "de vez em quando há" porque não sei, não posso saber, quantas histórias destas existem, atrás das fachadas das casas, de todas as casas. É aliás a primeira consequência de uma história assim: o desconforto com que olhamos todas as casas, na possibilidade de ocultarem histórias como esta. É uma maneira de sublimar o outro desconforto, o mais indizível.

O desconforto de saber, perante uma história como a do austríaco Fritzl e da sua filha Elizabeth, que não podemos manter o mal fora, lá fora, no desconhecido, nos desconhecidos, nos estrangeiros, nos outros, como algo de alienígena. O desconforto que nos faz pensar nos nossos pais e imaginar que podiam ser um Fritzl. Que nos podia ter sucedido isto, a nós: um dia temos 18 anos e o nosso pai fecha-nos numa cave da casa onde vivemos e nunca mais nos deixa sair. Ficamos lá 24 anos. Temos sete filhos do nosso pai. Ele leva três e deixa os outros. Que crescem ali, naquele espaço minúsculo, sem ver mais ninguém, sem nunca terem visto a rua, o sol, a chuva, a noite, sem que saibamos se algum dia vão poder sair dali. Um deles morre bebé, dos outros que foram levados nada sabemos. Nada sabemos do que se passa fora dali - tudo o que o nosso pai conta pode ser mentira. Podemos explicar aos nossos filhos que há mais que aquilo - mas haverá? E será boa ideia fazê-los sofrer com a ideia de que estão presos numa cave, ou é melhor fazer-lhes crer que é normal, aquela vida? Vivemos - como é que vivemos? Como é que sobrevivemos? Como é que não enlouquecemos? Como é que nos perdoamos o termos sobrevivido, o termo-nos habituado, o termos deixado viver assim os nossos filhos? - primeiro no terror de que o nosso pai (e ainda pensamos nele como nosso pai?) volte e depois, a partir de certa altura, no terror de que ele não volte. Porque se lhe acontecer alguma coisa morreremos ali, debaixo do chão da nossa mãe e dos nossos irmãos, sem salvação. Dependemos dele, do nosso carcereiro, algoz, violador. Ele é todo o nosso mundo, ele é tudo o que há, ele é a vida. Podemos até gostar dele. Podemos sentir qualquer coisa parecida com amor. Podemos, não podemos? Porque se isto aconteceu - e aconteceu -, se isto é possível, tudo é possível.

Não, numa história como esta não podemos falar de aumento de penas nem de mais polícia nem vociferar contra "a insegurança". Numa história como esta só podemos olhar para o rosto de Fritzl e tentar decifrar-lhe os sinais, aqueles que deveriam ter alertado toda a gente para o monstro que ali estava, e perceber que não havia maneira, que não há maneira. Nem de perceber - porque se no lugar da filha ainda nos conseguimos projectar, não há forma de pensar como será estar no dele, ser ele - nem de prevenir nem de evitar nem de adivinhar quando e como e porque é que estas coisas acontecem. Nem de encontrar castigos que apazigúem o nosso medo, e a dor e a perda horríveis, tenebrosas, destas vidas. Nenhum sistema penal ou moral nos responde a isto, nada nos protege deste mal. Porque está dentro. Das nossas casas, da nossa família, de tudo o que devia ser seguro e certo.
De nós. Porque é humano, tão pavorosamente humano.

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