Enxurrada constitucional, JCdasNeves, DN080512
ENXURRADA CONSTITUCIONAL
João César das Neves
professor universitário
naohaalmocosgratis@fcee.ucp.pt
O repórter Tintin na sua clássica aventura de 1937 L'Oreille Cassée (em português O Ídolo Roubado) visitou San Theodoros, uma república sul-americana então governada pelo general Alcazar. Aí o exército tinha 3487 coronéis e só 49 cabos. Esta situação anómala parece reproduzir-se na legislação contemporânea.
O direito pretende regular a vida concreta das sociedades. Para isso cria vários tipos de diplomas que, como no exército, seguem hierarquia rígida, das simples portarias à Constituição da República, tratados europeus e, no cimo, direitos humanos universais. Mas ultimamente as legislações de topo, que deveriam ser genéricas e estruturantes, descem cada vez mais aos pormenores da vida comum. Três factos recentes mostram-no com clareza.
O pacote laboral apresentado pelo Governo ainda mal começou a ser discutido. Mas toda a gente sabe que a necessária adaptação da legislação portuguesa à globalização vai embater na Constituição da República. Os 296 artigos da nossa lei fundamental estabelecem tantos detalhes que ela choca inevitavelmente com a realidade sempre volátil e complexa. Entre muitos outros casos, está estabelecido que "constituem direitos das comissões de trabalhadores exercer o controlo de gestão nas empresas" (art. 54.º, n.º 5 a) ou que "incumbe ao Estado assegurar (...) a fixação, a nível nacional, dos limites da duração do trabalho" (art. 59.º, n.º 2 b). Isto encontra-se ao mesmo nível do hino, bandeira, parlamento e tribunais. Com tal minúcia, não admira que do início de 2003 ao fim do mês passado o nosso Tribunal Constitucional tenha emitido 3681 acórdãos, mais que os coronéis de San Theodoros.
As leis europeias fundamentais sobrepõem- -se à nossa Constituição, mas são ainda mais intrometidas. Com a revisão do recente Tratado de Lisboa, os dois textos que regulamentam a União Europeia têm um total 413 artigos, sem falar nos 37 protocolos e 65 declarações anexas. Um dos dois, o Tratado sobre o Funcionamento da União Europeia, desce a temas tão variados como "as exigências em matéria de bem-estar dos animais" (art. 13.º), o "intercâmbio de jovens e animadores socioeducativos" (art. 165.º n.º 2) e a necessidade de "incentivar a criação de um clima propício ao desenvolvimento das empresas" de turismo (art. 195 n.º 1 a).
No topo da legislação mundial estão as declarações universais dos direitos humanos. Esses são princípios essenciais e nucleares, aplicáveis a toda a gente em todos os locais e circunstâncias. Seria de esperar a generalidade e o laconismo apropriados, não a cacofonia. Mas as declarações multiplicam-se, junto com as organizações capacitadas para os formular, do Conselho da Europa à Organização de Unidade Africana. Só as Nações Unidas já criaram 12 comités de peritos em direitos humanos, gerados por dois pactos, cinco convenções e cinco protocolos adicionais.
Após cinco anos de negociações, acaba de ser apresentado, sob a presidência de uma diplomata portuguesa, Catarina de Albuquerque, mais um Protocolo Facultativo ao Pacto Internacional sobre os Direitos Económicos, Sociais e Culturais da ONU. Esse pacto estabelece direitos como a "difusão de princípios de educação nutricional" (art. 11.º), a liberdade de "escolher para seus filhos (ou pupilos) estabelecimentos de ensino diferentes dos poderes públicos" (art. 13 n.º 3), de "participar na vida cultural" (art. 15.º 1 a) ou "beneficiar do progresso científico e das suas aplicações" (art. 15.º 1 b).
Para que servem todas estas declarações? Se são genéricas, ficam letra morta, admitindo interpretações mais contraditórias (o aborto é promovido como direito). Se são concretas, ficam deslocadas da realidade. Entretanto multiplicam-se as queixas, processos e debates.
Em Portugal o desemprego cresce, a Europa sofre decadência demográfica e o mundo vive uma crise alimentar. O que prospera triunfalmente por todo o lado é a produção legislativa. Como os pobres cabos de San Theodoros, cada vez que cada um de nós respira, fá-lo sob uma miríade de leis e regulamentos que manda e vigia.
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