Impunidades

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PÙBLICO
15.05.2008, Constança Cunha e Sá
De um momento para o outro, a visita oficial à Venezuela ficou reduzida a um maço de tabaco
Três anos depois de o Governo ter tomado posse, o PÚBLICO "descobriu" que o primeiro-ministro fumava nos aviões fretados para as suas viagens oficiais. Numa feliz coincidência, o PÚBLICO "descobriu" também, no mesmo dia, que, nesta sensível matéria, nem o Presidente da República estava isento de responsabilidades: embora não seja um miserável viciado, incapaz de resistir às garras da dependência, o prof. Cavaco Silva parece não se importar com o cigarro alheio, permitindo que este circule impunemente à sua volta, durante os voos oficiais em que participa. Infelizmente, o PÚBLICO não revela o nome nem a actividade dos prevaricadores que poluem esses voos oficiais. Em contrapartida, ao denunciar a permissividade de um Presidente que gosta de se distinguir pelo rigor, deixa no ar a ideia de que este, a bem da integridade das leis e de uma maior elevação dos costumes, se devia portar como um fiscal da ASAE, vigiando atentamente os maus hábitos dos seus companheiros de viagem. A nossa esplendorosa sociedade civil, que tanto grita contra o peso do Estado, não passa, como se vê, sem um "polícia" que lhe refreie a irresponsabilidade dos seus próprios instintos. Confesso que, num primeiro momento, me escapa a oportunidade desta última e decisiva "descoberta". Se os jornalistas do PÚBLICO, contactados pelo PÚBLICO, tinham conhecimento do que se passava - e, pelos vistos, tinham -, não se percebe por que é que só agora resolveram denunciar os factos que, desde há dois anos, poluem as viagens presidenciais. Seria de esperar que, dada a sua importância, estes tivessem sido revelados, na altura própria, com o devido destaque - e não que aparecessem, esta semana, em diferido, a reboque dos cigarros do eng. Sócrates e da fatídica cortina atrás da qual ele supostamente se escondeu.De qualquer forma, apesar da permissividade do Presidente, o que sobressaiu foi o "escandaloso" atentado à legalidade cometido pelo primeiro-ministro. De um momento para o outro, a visita oficial à Venezuela ficou reduzida a um maço de tabaco: os interesses petrolíferos, os insultos do sr. Chávez, a conivência do Estado português ou as sempre radiosas oportunidades de negócio desapareceram instantaneamente de cena, dando lugar a uma polémica doméstica, bastante mais sumarenta, sobre a impunidade dos governantes (o dr. Pinho também teve direito às suas passas), a falta de respeito pela legalidade (um conceito vaguíssimo, entre nós), o incómodo da tripulação (tomada por um respeitável embaraço), o estatuto jurídico dos aviões fretados (excepcionalíssimo, segundo a TAP) e a opinião dos constitucionalistas (unânime, para infelicidade do eng. Sócrates). No meio de uma iniciativa de carácter internacional o que surgiu foi o retrato mesquinho de um país que, entre outras coisas, ficou a saber que o homem que faz jogging no Kremlin e gosta de se exibir nas maratonas é o mesmo que desafia as leis em vigor porque não consegue passar umas horas sem fumar um cigarro. São as contradições do marketing que fazem com que um político saudável, que gosta de aparecer em calções e de exibir a sua forma física, se transforme, de um momento para o outro, num desprezível viciado que, não contente com o mal que faz a si próprio, ainda se atreve a pôr em causa a saúde dos outros, comprometendo irremediavelmente o único valor que as sociedades respeitam e que o Estado zelosamente nos quer impor por decreto. Se a Lei do Tabaco, aprovada por este Governo, é um sinal disso mesmo, dessa intolerância cega que se sobrepõe à liberdade de escolha e ao direito à propriedade, o comportamento do eng. Sócrates e o alarido que o rodeou revelam, com uma inquietante clareza, um Portugal pequenino e hipócrita que oscila entre a superior autoridade do chefe e a "relassa fraqueza" que, como dizia Eça, "nos enche de culpada indulgência uns para os outros, e irremediavelmente estraga entre nós toda a disciplina e toda a ordem". O que transparece deste episódio é a nossa subserviência por quem manda, o desprezo pela lei que nos caracteriza, os habilidosos artifícios que inventamos e a terna cumplicidade em que vivemos. Às "explicações" da TAP e ao mal-estar anónimo dos empresários junta-se a conivência dos jornalistas que, durante três anos, conviveram amenamente com este tipo de expedientes - ao contrário do que tem sido dito, o eng. Sócrates não ignorou apenas a sua própria lei: a proibição de fumar nos aviões já existia antes do zelo persecutório da ASAE e da cruzada contra o tabaco em que este Governo entusiasticamente se lançou. A "descoberta" do PÚBLICO não deixa de pôr em xeque os próprios jornalistas, nomeadamente aqueles que costumam acompanhar as visitas oficiais do primeiro-ministro. Há muito tempo que é sabido, nas redacções, que o eng. Sócrates costuma fumar durante os voos oficiais: quase sempre na parte de trás do avião, junto dos jornalistas que, em muitos casos, partilham o mesmo vício. Para que não haja qualquer equívoco, devo dizer que eu, embora nunca tenha viajado com o primeiro-ministro, sempre tive conhecimento deste hábito. Devia tê-lo denunciado? Admito que sim. Se calhar deixei-me "enlaçar" por essa "relassa fraqueza" que "nos enche de culpada indulgência uns para os outros". Mas confesso que tenho algumas dúvidas. Em qualquer caso e já que a história ganhou dimensão pública, penso que todos temos obrigação de nos confrontar com as nossas próprias responsabilidades. Jornalista

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