Enevoados

João Miguel Tavares, Público 04/06/2013

Há uma nova actividade política em Portugal, que a nossa esquerda pratica com especial enlevo, a que podemos dar o nome de "conferenciar para esquecer". Conferenciar para esquecer é uma espécie de beber para esquecer, onde o consumo de bebidas brancas é substituído pelo consumo de discursos brancos. Em vez de se afogar a dura realidade em álcool etílico, tenta-se afogá-la em frases pomposas, versos de Sophia e truques retóricos. Tivesse a polícia realizado uma operação stop junto à Aula Magna na noite de quinta-feira, à saída da conferência Libertar Portugal da Austeridade, e obrigado os participantes a soprarem no balão, e teria certamente encontrado centenas de pessoas à beira do coma poético, com três e quatro gramas de lirismo por litro de sangue.
O principal barman da noite, responsável por numerosas rodadas de frases de efeito para delírio da clientela, foi o reitor da Universidade de Lisboa, António Sampaio da Nóvoa. O magnífico reitor tem vindo aos poucos a ganhar um estranho protagonismo, que começou no 10 de Junho de 2012 e que o tem colocado na linha da frente da prédica nacional, distinguindo-se com tiradas tão belas quanto "não conseguiremos ser alguém na Europa e no mundo se formos ninguém em nós" ou "penso nos outros, logo existo". Consta que o stock de kleenex esgota invariavelmente nos supermercados mais próximos dos locais onde intervém.
Juro que eu não sou abstémio quanto a discursos galvanizadores. Tenho duas prateleiras de livros sobre Obama, e todos nós precisamos de gente que nos emocione e nos inspire. Mas, assim, de repente, convém não ir a reboque do primeiro soneto. Ora, quando vejo tanta gente respeitável (Daniel Oliveira no Expresso, Nuno Saraiva no DN, Rui Tavares no PÚBLICO) embriagada pelos discursos enevoados de Sampaio da Nóvoa, achando que no meio daquele espiche se esconde uma qualquer luz trémula capaz de nos indicar o caminho para fora da austeridade, começo a ficar seriamente preocupado.
Não tendo recebido qualquer convite para estar presente na conferência de libertação de Portugal da austeridade (até porque, para ver ficção científica, prefiro o Star Trek), mas estando atento à multiplicação de loas a Sampaio da Nóvoa, fui novamente perder um quarto de hora a ouvi-lo no YouTube. E em termos de coerência, pelo menos, o magnífico reitor não merece reparos: o seu discurso foi tão vazio quanto o do 10 de Junho. Introdução: "Para superar as dificuldades é necessário que haja mais vida, mais trabalho, mais criação de valor e de riqueza [palmas]." Desenvolvimento: "Precisamos de ideias que levantem Portugal, de investir no território e no conhecimento [mais palmas]." Conclusão: "Aqui estamos. Pela vida, e não pela morte. Pelo mais, e não pelo menos. Pela esperança, e não pelo desânimo [aplausos de pé]."
Houve bastantes mais "por isto e não por aquilo", mas acho que dá para perceber a ideia, que basicamente consiste em não haver ideia absolutamente nenhuma. Ora, como é possível que esta babugem seja de repente alcandorada a manifestação de uma qualquer consciência da pátria? Eis um espantoso mistério. Portugal - e não é ironia - precisa desesperadamente de uma esquerda lúcida e interventiva. Mas se isto é o melhor que ela tem para oferecer, já estou como Cavaco: que Nossa Senhora nos valha. Porque enquanto a grande alternativa à austeridade forem saraus político-poéticos, só mesmo um milagre (ou muita bebida) nos poderá salvar.

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