Amigos do alheio

JOÃO CÉSAR DAS NEVES
DN 2013-06-03
Uma das características mais bizarras do nosso tempo é a quantidade de pessoas que vive e dispõe do dinheiro dos outros. Aliás a comunicação social quase só trata disso. Do défice orçamental aos fundos da troika, das exigências de apoios e cortes, despesas e subsídios, esta crise é, no essencial, uma luta pelo dinheiro alheio.
A principal causa do fenómeno está, sem dúvida, no aumento brutal da dimensão do Estado. No século XIX as despesas públicas eram em média apenas 5% do minúsculo PIB da época. No final da Primeira República esse peso já tinha duplicado. Duplicou outra vez até 1974, altura em que Estado gastava um quinto daquilo que o povo produzia. Em 2010 esse valor ultrapassou 50%, tendo a austeridade da troika reduzido já para 45%. Quando o Orçamento do Estado lida com cerca de metade do que o país tem, há mesmo muita gente a viver de dinheiro alheio.
Nas grandes empresas acontece algo semelhante, pois aí tudo pertence a uma multidão de accionistas, e as despesas de um departamento pouco têm a ver com o valor final do produto. Não admira que muitos gestores tomem atitudes semelhantes a serviços públicos, talvez menos descaradas. Também eles gastam dinheiro dos outros.
A União Europeia trouxe novos cambiantes ao processo, permitindo viver de dinheiro longínquo. É incrível que tantas pessoas se sintam com direito à riqueza de regiões que nunca viram nem conheceram. Se o capital nacional fosse para longe, ficariam horrorizadas, mas acham normal exigir uma parte da fartura alemã.
O paroxismo do processo surgiu com a globalização de capitais, que permite usar dinheiro de desconhecidos. Em si mesmo, o crédito não significa obter fundos alheios, pois pagaremos amanhã o que gastamos hoje. Mas numa crise financeira como a actual, há fortes probabilidades de nunca se pagar, o que muda tudo.
É verdade que estas novas formas retiram muito do pejorativo da expressão tradicional "amigos do alheio". Hoje boa parte do gasto de dinheiro dos outros não constitui roubo. O funcionário público trabalha duro para receber o merecido ordenado, e o sector subsidiado tem razões para o ser. Apesar disso o facto de a verba vir de outrem traz sempre elementos perturbadores.
O primeiro problema é a indefinição. Um padeiro sabe que o que recebe depende do que produz. Mas o funcionário, reformado, sindicalista, subsidiado, não tem noção do seu real valor. Os montantes acabam determinados por conceitos abstractos, como justiça ou necessidade, progresso ou interesse. Isso permite subir muito as verbas, como aconteceu por cá até 2011, ou cortar imenso, como desde então.
O segundo aspecto é a facilidade com que se gasta o dinheiro alheio. Numa escola pública, onde propinas e ordenados nada têm a ver com os valores do produto envolvido, pais e professores fazem exigências ao ministério que nunca se ouviriam em estabelecimentos cujas verbas disponíveis vêm do bolso dos alunos. Note-se a displicência com que ministros e autarcas se apropriam dos montantes orçamentados e fundos estruturais, que não lhes custam a ganhar. Um médico de um grande hospital, mesmo privado, receita exames e tratamentos que omitiria se ele ou o doente tivessem de pagar a conta. Em certos casos essa facilidade torna-se uma verdadeira toxidependência.
O aspecto mais curioso são as razões que levam pessoas honestas e bem intencionadas a despender com vigor o que não é seu. Elas nascem de duas perigosas armadilhas. A primeira é a convicção de que o dinheiro não faz falta aos donos. As pessoas fingem acreditar que as verbas públicas vêm de ricos, o que permite, sem peso na consciência, exigir mais apoios, subsídios, estradas e despesas. Isso apesar da evidência de, mesmo que os milionários pagassem o que devem, seriam largamente insuficientes para metade do PIB. O outro engano é achar que, se eu não o gastar, outro departamento o vai desperdiçar, o que equivale ao mesmo: o dinheiro não faz falta aos outros. Em qualquer caso, só pode ser patética uma época que tanto abusa do dinheiro alheio.

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