Crónica de uma morte assistida


O meu pai faleceu há pouco mais de um ano, data que irrompe na minha memória, como marco incontornável, parte necessária da minha própria biografia. Sem descer a pormenores íntimos, desnecessários, esta é uma história pessoal que pode ter interesse geral.
Pude acompanhar o caminho que antecedeu a partida do meu pai: foram meses ao longo dos quais um homem válido, já ancião, apoio indispensável da sua esposa, doente, se tornou, surpreendentemente, o elo mais débil, necessitado de um qualificado apoio médico e familiar.
Quero recordar agora esses momentos densos, que vivi: não foram momentos terríveis, para esquecer, foram momentos fortes, cheios de sentido, em que cresci: a morte do pai tornou-se, para os filhos, uma escola de vida.
Lembro-me bem da primeira fase desta história, a do doente desenganado: um cancro devidamente extirpado reaparece, disseminado, antes do previsto. A notícia, no final de um exame médico a que assisti, recebi-a à vinda de um congresso científico: a vida entrelaça-se com a morte.
Os médicos conhecem bem a reação inicial dos doentes terminais, o "porquê eu?" que o meu pai também conheceu; já não é tão comum a resposta do homem de Fé, que encontra, numa relação viva com Deus, o sentido para uma alteração, aparentemente inesperada e sem sentido. Isto, sem deixar de sofrer o que todos sofrem.
Algumas ideias fortes me ficaram: e a primeira é esta - a dor faz parte da vida. Não vale a pena tentar ignorá-la, refugiando-se numa espécie de nuvem analgésica que foge, por princípio, de tudo o que custa, desde a picada de um mosquito até uma pontada aguda. A dor e o desconforto reclamam um sentido, não um mero alívio; seja qual for a idade de quem sofre.
Outra intuição que se acentuou é mais misteriosa; mas incontornável, na explicação, para quem os viveu, dos meses que ligaram o diagnóstico fatal ao desenlace final: a vida, realmente, não acaba aqui. Se assim não fosse, tudo isto teria sido angustiante e trágico: ora assim não foi. O doente, meu pai, sabia para onde ia; a morte, para ele, foi uma viagem, uma travessia nunca antes feita, mas tranquila: partiu ao encontro de Deus, que bem conhecia.
Um traço relevante desses dias passados foi também o contacto direto com o hospital onde meu pai esteve internado, cujo nome, naturalmente, não vem ao caso; um hospital onde se respeita a vida terminal com cuidado e se alivia o sofrimento com dedicação; isso permitiu-me compreender melhor o que é a arte da medicina paliativa e a sua importância na humanização da vida; chegará o dia de se tornar uma especialidade médica autónoma, em Portugal.
Ideia forte do passamento do meu pai foi ainda, como já se percebeu, a indispensável presença da família: a família é o lugar onde se nasce, onde se vive e onde se morre como pessoa, a melhor unidade de saúde móvel, que os meios terapêuticos mais modernos não suprem, pressupõem.
Um dia, chegou o desenlace da vida de meu pai: como se anteviu, o momento do falecimento revestiu-se da tranquilidade de uma partida, não da aflição de um desaparecimento. Quando morreu, serenamente, meu pai estava rodeado dos filhos; seguindo a Fé do pai, os filhos estavam a rezar, a encomendar a iminente viagem de quem sabia para onde ia.
Para mim, foi a primeira vez que assisti à morte de alguém. Posso agora refletir sobre o acontecido: o que é assistir à morte? Será encurtar a vida de quem morre, evitando todo o padecimento? Não, é aliviar a dor de quem ainda vive e acompanhá-lo até ao fim natural da vida.

Comentários

Anónimo disse…
Belíssimo!
Que a sua Fé no Senhor nosso Deus o acompanhe sempre....

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