Legitimidades

Vasco Pulido Valente 09/06/2013 Público

A esquerda e algumas notabilidades do PSD andam por aí a espalhar uma ideia perigosa: a ideia de que um Governo deve ser substituído quando cria um grande descontentamento público (desce nas sondagens, por exemplo, ou é vaiado a cada canto da província). Ou seja, quando perde a legitimidade de exercício. Ora, a legitimidade de exercício era precisamente o que a Ditadura invocava para justificar a sua existência e a sua longa duração. Marcelo, principalmente, insistia muito nesse ponto. Se o povo estava contente, não havia qualquer razão para mudar, nem, como é óbvio, para fazer eleições. As coisas falavam por si. Que o radicalismo resolva hoje recorrer ao mesmo tipo de argumento (embora em sentido inverso) não tranquiliza ninguém e dá uma impressão, de resto falsa, da fragilidade da lei e do Estado.
Isto mostra bem como os portugueses não aceitaram, nem ainda se conseguiram adaptar a um regime representativo. Do Senhor D. João VI, por graça de Deus, rei de Portugal e do Brasil, até à remoção da tutela militar sobre a democracia, nenhum Governo foi legítimo, pela simples razão de que não tinha legitimidade de origem. O Senhor D. João VI retirava a sua directamente do Altíssimo, a democracia, depois da primeira revisão constitucional, retirava a sua do sufrágio popular e universal. Pelo meio passou uma infinidade de usurpações, de "revoluções" e de eleições falsificadas. O respeito e o "nojo" pelos políticos, que não desapareceu, começou aí: a população letrada não lhes reconhecia o menor direito de falar por ela e não ignorava o caminho de oportunismo e de sabujice que os levara ao Parlamento e ao Governo.
A legitimidade de origem de Passos Coelho e de Paulo Portas não é duvidosa. Recomendar a sua expulsão pelo excelentíssimo dr. Cavaco abriria um precedente letal. Se Cavaco aceitasse esta louca lógica, dali em diante nada impediria que uma manifestação ou uma assuada chegassem para liquidar um Governo. E, se não chegassem, um tiro ou um ou outro espancamento bastariam. Pouco a pouco, o verdadeiro poder acabaria por se transferir para pequenos grupos de activistas (sem unidade ou programa), capazes de encher a Av. da Liberdade, o Rossio ou Terreiro do Paço. O Presidente ficaria reduzido a convocar eleições sobre eleições ou até a engolir o resultado do último tumulto. Não percebo por que motivo esse belo sistema beneficiaria a esquerda ou as notabilidades do PSD que hoje colaboram com ela. A seguir a Passos Coelho e a Paulo Portas seriam elas, com certeza, as vítimas designadas. Tudo se paga neste mundo.

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