O Crivelligate

João Miguel Tavares Público, 06/06/2013

Não é todos os dias que um jornal tem o privilégio de dedicar manchete e seis páginas a um quadro de 1486 intitulado (respirem fundo) Virgem com o Menino, Santo Emídio, São Sebastião, São Roque, São Francisco de Assis e o Beato Tiago da Marca. Vários especialistas em arte antiga ouvidos pelo PÚBLICO consideraram esta obra do italiano Carlo Crivelli uma raridade, que o Estado - aqui está a história - deixou lamentavelmente sair do país. Citando Raquel Henriques da Silva, antiga directora do Instituto Português de Museus: "Um país como o nosso ter um Crivelli e deixá-lo sair? Em que momento é que a protecção legal foi revertida? Como? Por quem? Porquê? Como cidadã, exijo saber."
O título do artigo era "Em 2012 perdemos um Crivelli sem saber" (eu, definitivamente, não sabia que tinha um), e nesse mesmo dia o secretário de Estado da Cultura pediu aos serviços "informações adicionais". No dia seguinte, Luís Raposo, presidente do ICOM Portugal, metralhava o caso com oito perguntas e outras tantas suspeições numa carta a este jornal, distribuindo calduços a Francisco José Viegas, o alegado passador que permitiu a Crivelli saltar a fronteira de Badajoz. E eu, no meio deste empolgante Crivelligate, ia perguntando aos meus botões: será tudo isto assim tão indigno quando o que está em causa é um quadro renascentista italiano de Miguel Pais do Amaral e não do Estado português? Propriedade privada, estão a ver? Aquela coisa que é protegida pelo artigo 62.º da Constituição (por acaso, um dos bons artigos que ela lá tem), e que diz: "A todos é garantido o direito à propriedade privada e à sua transmissão em vida ou por morte."
Antes que chovam comentários desagradáveis da esquerda trompe l"oeil, eu juro por todos os santos incluídos no quadro de Crivelli que não sou um neo-super-hiper-megaliberal. Percebo que, no limite, haja interesses nacionais que devam ser acautelados. Só que toda a abordagem deste caso dá como natural o impedimento da saída do quadro, quando num país decente tal decisão só pode: 1) ser considerada absolutamente excepcional; 2) vir acompanhada de um cheque de três milhões à ordem de Pais do Amaral.
Claro que podemos sempre juntar-nos a George Steiner quando ele levanta dúvidas sobre o direito de as grandes obras de arte serem propriedade privada. Steiner entende que elas não deveriam estar sujeitas à especulação e à cobiça, nem a sua exibição pública condicionada pelos humores dos proprietários. O problema deste raciocínio artístico-socialista é como enquadrar nele a importância do mecenato na história da Arte. Existiriam sequer quadros de Crivelli sem a riqueza das famílias italianas que impulsionaram o Renascimento? Já para não falar, em sentido oposto, que a grande contribuição da União Soviética e da China para a pintura do século XX foram cartazes de Estaline e Mao.
A verdade é que, até em questões artísticas, São Adam Smith continua a velar por nós: a procura livre de interesses individuais é quase sempre o melhor caminho para o bem comum. Seja quando Francesco del Giocondo contrata os serviços de Leonardo da Vinci para pintar um retrato da sua enigmática esposa. Seja quando o barão van Swieten coloca as obras manuscritas de Bach e Händel à disposição do jovem Mozart. Respondendo à pergunta de Raquel Henriques da Silva: "Um país como o nosso pode ter um Crivelli e deixá-lo sair?" A verdade é que o país não tem coisíssima nenhuma, Raquel. O Crivelli é de Pais do Amaral.

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