Os custos do "cisma grisalho" numa sociedade cada vez mais grisalha

José Manuel Fernandes Público, 10/05/2013

É politicamente mais fácil defender os pensionistas de hoje e esquecer os pensionistas futuros. Mas não é mais justo
Com ar grave, palavras escolhidas e a encenação de que tanto gosta, Paulo Portas colocou-se do lado dos pensionistas. "Esta é a fronteira que não posso deixar passar", anunciou, ao referir-se à possibilidade de criação de uma taxa sobre as pensões. E até não será muito difícil conseguir bloqueá-la, pois, como logo a seguir acrescentou, há margem no conjunto de medidas anunciadas por Passos Coelho para acolher esta exigência do parceiro de coligação.
Ao contrário da maioria dos analistas, acho saudável que Paulo Portas tenha feito aquela declaração - uma declaração que, porventura, até foi combinada com o primeiro-ministro. E acho saudável por duas razões.
Primeiro, porque significa que o líder do CDS negociou, isto é, que não se limitou a alinhar no "consenso" da coligação, mas defendeu nesta as suas posições e os interesses da sua base eleitoral. É habitualmente assim que se faz nas democracias desenvolvidas: partidos diferentes negoceiam e chegam a acordos que procuram respeitar o que sentem ser essencial. Foi isso que Paulo Portas fez, foi isso que o parceiro mais forte da coligação também aceitou fazer.
Depois, porque é natural existirem tensões nos Governos de coligação, e é normal essas tensões serem do conhecimento público. Neste momento, por exemplo, há tensões no executivo de coligação que governa a Irlanda e a discussão está a passar pelos jornais, tal como houve e haverá sempre tensão e acrimónia pública entre os dois partidos que estão no Governo no Reino Unido, o Conservador e o Liberal-Democrata. Em Portugal também já vivemos momentos assim, durante o Governo do bloco central, altura em que Mota Pinto, o então líder do PSD, até em comícios criticava o Governo de que fazia parte sem nunca ter deixado de ser leal ao primeiro-ministro, que se chamava Mário Soares. Só um país doentiamente obcecado com unanimidades, um país que viveu sem especiais estados de alma o autoritarismo sem qualquer espaço à crítica dos tempos de Sócrates, só um país destes estranha - e se põe a comentar sem equilíbrio nem senso - a "crise" na coligação ou o "pântano" das indefinições.
A tomada de posição de Paulo Portas teve ainda uma outra virtude: mostrar que nesta crise há caminhos alternativos, mas que nenhum deles é indolor.
Na sua defesa dos pensionistas, o líder do CDS falou de duas situações distintas. Por um lado, do "país em que parte da pobreza está nos mais velhos"; por outro, dos "avós que têm de ajudar os filhos", muitas vezes desempregados. São situações diferentes que devem ter soluções diferentes e levantam problemas muito distintos. A primeira remete para os dilemas da pobreza num país pobre onde quatro em cada cinco pensionistas recebem menos do que o equivalente ao salário mínimo. A segunda para a solidariedade entre gerações, sendo que na sua intervenção Portas disse querer evitar um "cisma grisalho", só que fê-lo tomando partido pelos "grisalhos". Isso não tem nenhum mal, é uma opção legítima, mas deve ficar claro que é isso mesmo, uma escolha: protege os reformados de hoje, mas torna mais difícil a vida aos reformados de amanhã.
O exemplo escolhido por Paulo Portas é real: há muitos avós que estão a socorrer filhos e netos. Só que isso não sucede apenas porque estamos em crise - sucede porque decorre de escolhas que fomos fazendo ao longo das últimas décadas. Vale a pena recordá-las e, também, discuti-las.
Até à década de 1960 os sistemas de protecção social na velhice eram muito incipientes em Portugal. As pessoas, cuja esperança de vida também era mais baixa, sabiam que tinham de poupar para os anos "grisalhos", e isso reflectia-se em taxas de poupança que eram das mais elevadas da Europa (no final da década de 1970 situavam-se nos 27% do PIB). Era um indicador típico do nosso subdesenvolvimento.
A forma como edificámos, tardiamente, o nosso Estado social virou este mundo de pernas para o ar. A Segurança Social passou a encarregar-se dos idosos, apesar das nossas limitações e do nível muito baixo da maioria das pensões. Mas percebeu-se depressa que já não era necessário poupar para a velhice, que se podia "viver a vida". Sem surpresa, em 2007, antes da crise, a nossa taxa de poupança tinha caído para menos de 10%, uma das mais baixas da Europa e do Mundo. Passáramos do oito ao oitenta. O que também se reflectiu na vida em família: antes os filhos acolhiam os avós em casa para a fase final das suas vidas; agora são os netos que adiam indefinidamente a sua saída do lar paternal.
Não é possível pensar no futuro dos sistemas públicos de segurança social sem perceber, também, estas mudanças nos nossos modos de vida.
O que está em discussão quando se fala no reequilíbrio da Segurança Social, que sabemos indispensável, é saber se o esforço deve ser feito quase exclusivamente pela geração dos filhos, pelos que ainda não são pensionistas, pelos que pagam os impostos e as contribuições, ou se há margem para pedir também uma contribuição aos que já estão reformados, sobretudo aos que auferem pensões mais elevadas. O que Portas veio dizer foi que essa era a fronteira intocável. Sem surpresa, os "grisalhos" que ocupam quase todo o nosso espaço de discussão pública aplaudiram. Eu não.
Não aplaudo esta irredutibilidade do líder do CDS porque, mesmo entendendo as razões dos mais velhos, dos que jogaram o jogo das suas pensões de acordo com as regras vigentes, mesmo sabendo que um pensionista tem muito menos possibilidade de corrigir o seu trajecto de vida do que um jovem, julgo que há um desequilíbrio tão grande entre certas pensões actuais e o que poderão ser as pensões futuras que um mínimo de equidade é recomendável. Em nome do mesmo contrato entre gerações de acordo com o qual os que estão a trabalhar pagam para os que estão reformados.
Mas também não aplaudo esta posição porque penso que o objectivo do Estado social não deve ser o de dar recursos aos pensionistas para apoiarem os seus netos, antes o de criar condições para que esses netos tenham uma vida independente e se realizem pessoal e profissionalmente.
O nosso Estado social desequilibrou a relação entre as responsabilidades pessoais e familiares e as responsabilidades da comunidade e do Estado. Em certo sentido, infantilizou a sociedade. Infantilizou-a quer por lhe dar a ilusão de uma protecção eterna, quer por criar condições que contribuem para que os filhos permaneçam até demasiado tarde em casa dos pais.
Há discussões que vale a pena ter e esta é uma delas. Portas já veio dizer de que lado está, mas enganou-se no diagnóstico do "cisma grisalho". É mais fácil os políticos colocarem-se do lado dos pensionistas de hoje, uma poderosa força eleitoral, e não considerarem tanto os interesses dos pensionistas de amanhã, pois estes não sentem tão directamente o que é do seu interesse. Por isso, da mesma forma que foram raros os comentadores a chamar a atenção para este dilema (Helena Garrido, Henrique Raposo), duvido que apareçam muitos políticos a dizer que deixar cair a taxa sobre as pensões não é um almoço grátis - é sim uma refeição que será paga amanhã pelos mais novos.
Há ano e meio, quando Vítor Gaspar foi a uma televisão justificar o corte de dois subsídios aos funcionários públicos e aos pensionistas, recordo-me de ele ter referido que a alternativa seria despedir cerca de 100 mil funcionários públicos. Agora, depois do Tribunal Constitucional ter proibido que se tocasse nesses subsídios, mesmo em versão mitigada, sabemos que até 2015 deverão sair da administração pública 100 mil funcionários. Para poupar os subsídios vamos ter ainda mais desempregados. Assim se prova que há sempre alternativas, mas também que elas não vêm a custo zero. Nalguns casos até terão um custo social mais elevado, como agora sucede. Mais elevado mas, até ver, constitucionalíssimo.

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