O perigo da auto-referencialidade da Igreja
P. Duarte da Cunha
Voz da Verdade, 2013.05.12
O Papa Francisco tem falado muito de um grande perigo para a Igreja, a chamada auto-referencialidade. O Papa insiste como uma sua prioridade que a Igreja não se deve nunca referir a si mesma mas a Deus.
Segundo o Cardeal Jaime Ortega, arcebispo de Havana, nas reuniões que precederam o Conclave, o então cardeal Bergoglio terá impressionado os outros cardeais pela justeza do juízo ao dizer: "Quando a Igreja não sai de si mesma para evangelizar torna-se auto-referencial, adoece…". E já como Papa, aos bispos da Argentina Francisco mandou uma mensagem onde além de saudá-los, recordou como ponto fundamental do seu magistério que "a enfermidade típica da Igreja fechada em si mesma é a auto-referencialidade; olhar-se a si mesma, é uma espécie de narcisismo que nos conduz à mundanidade espiritual e ao clericalismo sofisticado e que por isso impede-nos de experimentar a «doce e reconfortante alegria de evangelizar»."
É uma advertência forte e que deve ser levada muito a sério na Igreja e por todos. Não penso que seja um risco apenas dos bispos ou dos padres, mas de todos os baptizados e de todas as comunidades cristãs. Nós somos Igreja para anunciar Jesus Cristo e porque recebemos a vida nova de Jesus Cristo, não para nos anunciarmos a nós ou a um projecto humano que possamos forjar. A referência a Jesus Cristo deve ser permanente e em tudo na Igreja.
Para se perceber o significado desta questão parece ser necessário aprofundar o que o Papa quer dizer quando fala da "mundanidade espiritual". Sabe-se que o Santo Padre cita a este propósito o teólogo francês Henri de Lubac que na sua obra-prima sobre a Igreja, "Méditation sur l'Église", a certa altura diz: "O maior perigo para a Igreja que nós somos, a mais pérfida das tentações, aquela que renasce todos os dias, insidiosamente, mesmo quando todas as outras são vencidas e que é alimentada até dessas vitórias, é aquilo a que Dom Vonier chamava «mundanidade espiritual»". (p. 327)
A referência a Dom Anscar Vonier O.S.B. (1875-1938) - um padre beneditino alemão que durante quase 40 anos foi abade em Inglaterra - faz-nos ir ao seu livro sobre o Espírito Santo e a Igreja ("The Spirit and the Bride"). Nesta obra, o autor diz que o maior perigo para a Igreja não se refere ao que normalmente poderíamos pensar, ou seja, à riqueza material, aos interesses mesquinhos que existem por todo o lado, mas a uma mais subtil mas também mais perigosa ratoeira do demónio. "Se a cristandade chegasse ao nível de uma sociedade eticamente perfeita cujo objectivo fosse a prosperidade temporal, mesmo que esta fosse fruto da honestidade na vida, a Igreja, tal como Lúcifer, teria caído na apostasia, teria recusado o Espírito Santo. Ela teria agradado aos homens em vez de agradar a Cristo, ela teria feito do aplauso da humanidade a sua suprema recompensa." E, depois explica: "Normalmente entendemos por mundanidade o amor pela riqueza e pelo luxo entre os dignitários da Igreja. Isto é, evidentemente, uma coisa má, mas não é o pior dos males. A mundanidade espiritual, se tomasse conta da Igreja, seria muito mais desastrosa do que a mundanidade do aparelho. Por mundanidade espiritual referimo-nos, na prática, ao abandono das outras mundanidades, mas de tal modo que o ideal moral e até espiritual passariam a basear-se não na glória de Deus mas na glória do homem e da sua perfeição moral. Um olhar completamente antropocêntrico. Ainda que os homens tivessem todas as perfeições espirituais, se estas perfeições não fossem referidas a Deus, seriam mundanidade."
A mundanidade espiritual é, portanto, a auto-referencialidade, a vaidade espiritual que leva o homem a pensar-se capaz de se salvar a si mesmo. É o pecado contra o Espírito Santo! Achar-se capaz de ser completamente bom sem Deus! O perigo, portanto, está no orgulho que leva a pessoa a esquecer o que Jesus disse: "sem Mim nada podeis fazer" (Jo 15,5).
Não há nada de pior do que uma Igreja que não esteja de joelhos diante de Deus, a pedir e a agradecer, o que precisa e o que consegue. Uma Igreja que procure encher as igrejas com facilitismos, com um marketing moderno para ser bem acolhida pelo mundo, mas que deixa de lado a cruz de Cristo, que julgue que o êxito está na sua coerência moral e que não sinta a necessidade da misericórdia, é uma Igreja auto-referencial, é uma realidade mundana que o Papa compara a uma ONG. A Igreja que não é auto-referencial é a Igreja que aponta sempre para Deus e que O adora acima de tudo. Também por isso é uma Igreja onde as pessoas se reconhecem pecadoras e não têm medo de pedir perdão. É uma Igreja que nunca esquece que a conversão ainda que empenhe a liberdade humana, precisa da ajuda da graça e que espera também receber de Deus a força para se manter fiel.
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