Edmund Burke revisitado em Londres e Lisboa

João Carlos Espada Público, 27/05/2013

Dois livros sobre Edmund Burke saíram quase em simultâneo, há menos de um mês, um em Londres, o outro em Lisboa. O de Londres - Edmund Burke: Philosopher, Politician, Prophet, por Jesse Norman (William Collins) - teve recensões imediatas por Boris Johnson (mayor de Londres), Charles Moore (biógrafo de Thatcher) e Mathew D"Ancona (ex-director da Spectator). O de Lisboa - A Filosofia Política de Edmund Burke, por Ivone Moreira (Aster) - foi apresentado na FNAC-Colombo por António Braz Teixeira e João Pereira Coutinho. A coincidência merece uma reflexão, a mais do que um título.
No continente europeu, Edmund Burke é um autor quase desconhecido. Quando é conhecido, é em regra menosprezado ou mal entendido. No mundo de língua inglesa, em contrapartida, constitui uma referência central para conservadores, liberais e trabalhistas. Sobre esta dissonância cognitiva, gerada misteriosamente na travessia do Canal da Mancha, podia ser escrito um tratado.
O paradoxo teve início ainda em vida de Edmund Burke. Quando a Revolução Francesa estalou, em 1789, todos esperavam que Burke a apoiasse com entusiasmo. Mas, em vez disso, ele condenou-a com veemência, acusando-a de veicular um novo despotismo, talvez mais despótico do que os velhos despotismos de monarcas absolutos - contra os quais Burke sempre se batera.
A surpresa foi total porque Burke era o líder intelectual dos liberais (Whigs) no Parlamento britânico. Ao longo de uma ilustre carreira parlamentar, Burke distinguira-se na defesa de todas as grandes causas liberais: a defesa dos católicos irlandeses; a condenação dos abusos fiscais contra os colonos americanos; a denúncia da prepotência do governador da Índia, Warren Hastings, contra o qual liderou um longo processo de impugnação na Câmara dos Comuns; a defesa do comércio livre e da "mão invisível" de Adam Smith, contra todas as formas de proteccionismo; a crítica aos "governos de Corte" do rei Jorge III e a defesa pioneira de governos com base em partidos parlamentares.
Por todas estas razões, ninguém esperava que Burke pudesse transformar-se no principal crítico da Revolução Francesa. Mas foi exactamente isso que ele fez, ao publicar, em 1790, esse grande clássico do pensamento político que dá pelo nome de Reflections on the Revolution in France.
Os seus colegas de bancada, os Whigs, pensaram que ele tinha perdido o juízo. Os Tories, embora concordassem com ele, preferiram guardar as suas distâncias para com o homem que, nas últimas quatro décadas, liderara todas as campanhas "progressistas" contra eles.
Burke parecia então ir terminar a sua vida e a carreira parlamentar em total isolamento. Mas, em 1793, Luís XVI é executado e tem início o "Reino do Terror" em nome da "República da Virtude". As previsões de Burke sobre o destino anárquico e despótico da Revolução Francesa eram ultrapassadas pela realidade dos factos.
Uma comoção intelectual abalou a sociedade britânica. As elites políticas e intelectuais do país iniciaram um exame de consciência colectivo sobre as razões que tinham permitido a Burke ter razão sozinho e antes de tempo. Um novo consenso político emergiu gradualmente entre a direita, o centro e a esquerda britânicas, o qual ainda hoje é dificilmente compreensível no continente europeu e ainda hoje constitui um dos elementos definidores da especificado da cultura política de língua inglesa.
Edmund Burke está no centro dessa especificidade. Ele é hoje prioritariamente visto como o fundador do moderno conservadorismo de matriz liberal, dominante no mundo de língua inglesa. É lido como inspirador de Disraeli e Salisbury, no século XIX, bem como de Winston Churchill e Margaret Thatcher, no século XX.
Simultaneamente, é reivindicado à esquerda do espectro político. Em 1910, o Presidente norte-americano Woodrow Wilson citava Burke como o seu mestre. Em 1920, o socialista britânico Harold Laski classificava Burke como um dos maiores pensadores políticos de sempre. (Karl Marx, curiosamente, denunciara Burke como um "sicofanta a soldo da oligarquia inglesa e um burguês vulgar"). Na década de 1990, o trabalhista Raymond Plant apresentou Burke como inspirador do New Labour de Tony Blair.
O mistério de Edmund Burke é o mistério da cultura política de língua inglesa. Sem ele, é impossível compreender esse mistério: porque são os conservadores de língua inglesa mais liberais, porque são os liberais mais conservadores, e porque são os trabalhistas mais liberais e mais conservadores do que todos os seus respectivos parceiros no continente europeu? Os dois excelentes livros agora publicados ajudam a decifrar esse mistério.

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