De que falamos quando falamos de Fátima?

José Tolentino Mendonça
© SNPC | 12.05.13


Fátima representa, de um modo tão extraordinário que o nosso século apenas começou a descobrir, a afirmação de uma virtude proscrita e fundamental: a da Esperança.
Nos baldios de outrora, povoados de rochas e azinheiras, ou no santuário atual, o que as multidões ouvem não é nada que, de mil maneiras, já não tenha sido sussurrado à alma humana. Aliás, para os cristãos, todas as revelações são sequências, linhas de água que arrastam o Espírito pelas paisagens da História. Mas o manancial, a torrente incessante, a palavra que dessedenta é, ontem, hoje e sempre, Jesus Cristo.
Fátima tem a simplicidade e o mistério de uma página evangélica. É o seu enredo eterno que, diariamente, desenrola: as nossas histórias humanas, frágeis, estilhaçadas; o nosso brilho ameaçado; a nossa vida por salvar. Isso e o encontro com Maria que sugere: «Fazei tudo o que Ele vos disser» (Jo 2, 5).
Numa cultura que se compraz em exaltações crepusculares, impotente face à crise de sentido e de valores, sem os quais as existências dos indivíduos e das sociedades facilmente se esboroam, Fátima vem recolocar a questão da Esperança, porque recoloca também a questão do Homem. Ensinando, na sua linguagem pobre (que escandaliza e confunde os sábios, mas que as crianças e, os que são simples como elas, entendem), que o Homem não tem de ser náufrago ou prisioneiro (eis a paradoxal proposta da "penitência"), mas que a vocação profunda da Pessoa Humana realiza-se na abertura e no diálogo com Deus (eis o que quer dizer a "oração").
O fenómeno de Fátima surge e desenvolve-se durante a Primeira Grande Guerra, da qual anuncia o fim, a depressão económica, o terror estalinista na União Soviética, os horrores incontados do nazismo, a guerra civil espanhola, a Segunda Grande Guerra, a guerra da Coreia, a guerra da Argélia, a guerra do Vietname, as guerras de África, do Golfo, dos Balcãs...
É neste cenário de um mundo desumanizado, que consome o melhor do seu esforço na fabricação do luto e da morte, que a mensagem de Fátima se faz ouvir, lembrando que nenhuma civilização se pode sustentar no esquecimento da vida, na alienação do coração.
Quebrando a casca dura dos pietismos pode-se melhor entender (e crer) até que ponto, por exemplo, a Consagração ao Imaculado Coração de Maria, um dos aspetos centrais da mensagem, ao contrário de ação intimista e espiritualmente vaga, é ousadia de afirmar o triunfo do coração como cimento de um mundo novo que deve nascer. Um mundo que não tome os ínvios caminhos da desmedida e da desumanidade. Um mundo que não ignore a justiça e o bem. Um mundo que estimule os laços de fraternidade para lá de todas as fronteiras. Um mundo que potencie o acontecer da beleza e da alegria. Um mundo que pressinta o silencioso e redentor brilho de Deus.
Fátima é um laboratório da humanidade renovada. O fluir da salvação, encetada no já e no agora desta vida. Uma proposta de redenção próxima e amável, como uma mão amiga estendida ou uma porta entreaberta nas nossas noites errantes de peregrinos.
À medida que o tempo passa, acredito mais no segredo de Fátima. Nesse segredo que desassossega, que nos arranca de casa, dos trabalhos, da cidade e nos lança, peregrinos, para a imensidão das estradas. Eu acredito num "não sei quê" que esse segredo derrama em nós: uma porção de confiança, de abandono e de aventura. Uma vontade de tornar a vida mais que tudo verdadeira. De tornar generosos os projetos e fecundos os laços que nos ligam aos outros. De tornar absoluta a nossa sempre frágil Esperança.
À medida que o tempo passa, vou conhecendo pessoas cujo tesouro interior foi descoberto, ampliado nos caminhos de Fátima. Pessoas que contam histórias simples, misturadas com sorrisos e lágrimas. Histórias de um Encontro tão parecido ao que teve uma rapariga da Judeia, de nome Maria.
Que têm os peregrinos de Fátima? Têm o vento por mapa e a lonjura por canto. Têm a conversão por caminho e a prece ardente por guia. São filhos de uma promessa que se cumpre dentro da vida.
Gosto dessa frase de Vitorino Nemésio que diz: "Com Fátima entrou um certo sinal de eterno nos arranjos humanos da História. O mundo passou a valer um pouco mais". Gosto, porque por caminhos simples, imprevistos e profundos isso nos é ensinado como uma evidência humilde e apaixonante.

Comentários

Unknown disse…
BELEZA! este maravilhoso artigo do Pe. Tolentino.
Pérolas que enfeitam, emocionam e dão encanto às nossas vidas.
Sou peregrina de Fátima.
E a história da minha vida e dos meus não se poderia escrever sem esses caminhos ... e sem Aquela que está lá, à nossa espera para nos receber quando chegamos, enquanto nos vai dessedentando na estrada ...

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